Transposição do São Francisco: R$ 8,4 bilhões, e nem uma gota d'água


Daqui sairá as lágrimas do Velho Chico 
Foto: Almacks Luiz

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em pronunciamento no dia 8 de julho de 2003, referindo-se à transposição do Rio São Francisco, declarou que “não importa se vai vir do Nilo, mas vai chegar. O importante é que devemos a água para uma região empobrecida. Eu agora acabei de fazer um decreto nomeando o meu vice José Alencar para coordenar um grupo de trabalho para fazer definitivamente a transposição das águas para o Nordeste brasileiro”.

Dez anos depois e gastos R$ 8,4 bilhões, os canais não transportam um gota d’água sequer. É uma obra que leva nada a coisa alguma! Não obstante o discurso ufanista e eleitoreiro do ex-presidente, essa obra é imprópria, cara e megalomaníaca. Não digo que é faraônica, porque seria uma ofensa aos faraós do Antigo Egito, que não teriam a insensatez de construí-la.

Antes que algum político chapa-branca venha contestar as minhas palavras, dou alguns dados básicos desse projeto. Para que as águas do Rio São Francisco alcancem os estados a serem beneficiados, terão que ser executados 314 quilômetros de canais; 25 quilômetros de túneis; 13 quilômetros de aquedutos; 27 reservatórios; nove estações elevatórias; e depois percorrer 2 mil quilômetros de rios.

Para que as águas do São Francisco cheguem aos canais de distribuição através das estações elevatórias, o consumo de energia será da ordem de 360 Megawatts/h (MWh). Para que os leitores tenham uma ideia do que isso representa, essa energia é suficiente para abastecer 1,8 milhão de residências (considerando o padrão de consumo médio igual a 150 KWh/mês). À energia temos que somar os altíssimos custos de manutenção dos diversos equipamentos.Ademais, devido à proximidade da linha do Equador e consequentemente à alta insolação, as perdas por evaporação e infiltração podem alcançar 25%.

Faço duas perguntas às autoridades e políticos que defendem esse projeto, já que esse assunto sempre é omitido nas declarações oficiais: 1ª) Como resultado dos altíssimos custos de operação e manutenção, qual será o preço do metro cúbico da água para o pequeno e médio agricultor?; e 2ª) Quem arcará com os custos das obras complementares – pequenas adutoras e redes de distribuição – para levar a água dos canais e rios até a porta das pequenas propriedades?

Só para recordar, o orçamento inicial do Ministério da Integração era de US$ 5,5 bilhões, o que equivale a atuais R$ 11 bilhões, com a conclusão total das obras prevista para 2012. Pois bem, 2012 passou, foram gastos R$ 8,4 bilhões e, segundo os relatórios oficiais, só foram concluídos 43% do total das obras (www.integracao.gov.br). Ou seja, seguindo esse parâmetro de custos, o governo teria que gastar mais R$ 12 bilhões para a conclusão da obra, o que daria um custo total de R$ 20 bilhões. Se assim for, o custo final da obra será o dobro do previsto!

No entanto, há um agravante de enormes proporções: após serem gastos R$ 8,4 bilhões: as obras praticamente foram abandonadas, e o que se vê é o revestimento de concreto dos canais se desintegrando como se fossem pó, sob o sol escaldante do Semiárido, já que pelos canais não corre uma gota sequer d'água. Assim sendo, aos custos necessários para finalizar a obra deverão ser acrescentados outros tantos bilhões de reais para reconstruir o que foi perdido.

Um escândalo e um total desrespeito na aplicação do dinheiro público. O triste em tudo isso é ver que ninguém foi cobrado nem punido por tal irresponsabilidade. Onde estavam o Tribunal de Contas da União (TCU), Controladoria Geral da União (CGU) e o Ministério Público Federal (MPF), que permitiram que tal desperdício de dinheiro público fosse levado adiante? Até quando os órgãos de fiscalização e controle permitirão que o suado dinheiro do povo seja desperdiçado em obras inúteis? 

Se, o governo em vez de ter iniciado essa obra megalomaníaca tivesse contratado empresas privadas de Israel – que colhem tulipa, planta típica de clima frio, em pleno deserto do Neguev –, para resolver o problema de abastecimento de água do Semiárido, seguramente elas teriam irrigado toda a região com a metade do dinheiro que já foi torrado pelas nossas autoridades. Com toda a certeza, seguindo a linha do bom-senso, os israelenses jamais teriam optado pela transposição e, sim, pelo aproveitamento das águas subterrâneas e das águas de chuva – reservatórios e açudes – e uma bem estruturada rede de adutoras e ramais de distribuição, que atingiriam todos os rincões do Semiárido.

Resolver o problema da convivência – e não combate – com a seca é simples e barata. Mas esse tipo de obra barata e simples esbarra na demagogia e populismo dos nossos “políticos copa do mundo” – aqueles que só aparecem a cada quatro anos com as suas contumazes promessas nunca cumpridas –, que não gostam de obras que ficam debaixo do chão, pois ninguém as vê e, portanto, não dão votos para os demagogos e oportunistas. A esses só lhes interessa fazer a “transposição” do dinheiro público para irrigar os seus bolsos (e cuecas!), enquanto milhões continuam passando privação.

Em outro discurso, o ex-presidente Lula declarou que aqueles que criticam o projeto de transposição não tomaram água suja, como ele e seus irmãos, e que essa realidade precisa acabar. Concordo plenamente com o ex-presidente: esta situação não pode mais perdurar, pois é uma vergonha nacional. No entanto, não será o megalomaníaco projeto de transposição do Rio São Francisco que vai acabar com a “indústria da seca”, que por séculos a fio vem mantendo este estado de calamidade obrigando o povo a beber a mesma água barrenta do gado.

Ademais, antes de se falar em transposição, seria importante que as autoridades se preocupassem, sim, com a revitalização do Velho Chico, que aos poucos está morrendo de anemia hídrica. Se não cuidarmos deste enfermo, o mesmo estará morto antes do fim deste século, e sua outrora pujança e beleza só estarão na memória de quem as viu ao vivo ou em fotos e vídeos.

* Humberto Viana Guimarães, engenheiro civil e consultor, é formado pela Fundação Mineira de Educação e Cultura, com especialização em materiais explosivos, estruturas de concreto, geração de energia e saneamento.

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