O veneno no pão nosso de cada dia



O Brasil é líder mundial no uso de agrotóxico. As empresas transnacionais comemoram, enquanto o prejuízo fica para os trabalhadores rurais e os consumidores
 
Por Tatiana Merlino
 
Do lado esquerdo da estrada de terra vermelha, uma cerca viva impede a visão da fazenda. Do lado direito, é diferente: é possível ver o pomar repleto de árvores de laranja, embora a maioria não dê mais frutos. A época da colheita já passou, foi em agosto. Estamos em outubro. Mais alguns metros percorridos de carro pela estrada da área rural do município de Lucianópolis, interior paulista, ouve-se um som vindo por detrás do pomar.

Parece o ronco de um motor. Descemos do carro e cruzamos o limite da fazenda. O som se aproxima. Primeiro quarteirão, nada, segundo, terceiro, quarto. Lá pelo quinto quarteirão de árvores o barulho fica forte e avistamos o trator vermelho, pilotado por um homem que pulveriza um produto no laranjal. É Luiz Andrade de Souza, que trabalha e mora com a família na fazenda. Ele trabalha sem nenhum Equipamento de Proteção Individual – EPI, dispositivo exigido pela legislação do Ministério do Trabalho para a aplicação de defensivos agrícolas.
 
Luiz Andrade é uma vítima potencial de problemas de saúde decorrentes da manipulação dos agrotóxicos. De acordo com dados divulgados no começo de novembro pelo Censo Agropecuário 2006 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), houve, em 2006, pelo menos 25.008 casos de intoxicação de agricultores. Os dados também indicam que herbicidas, fungicidas e inseticidas foram usados em 1,396 milhão de fazendas.
 
A pesquisa mostra que mais de 1,5 milhão, das 5,2 milhões de propriedades rurais do  país, utiliza agrotóxicos. E que 56% destas não recebem orientação técnica. A aplicação manual dos venenos, por meio do pulverizador costal – que é o equipamento que apresenta maior potencial de exposição aos agrotóxicos – é a mais utilizada, presente em 70,7% dos estabelecimentos agrícolas que fazem uso de algum tipo de defensivo. O Censo aponta também que 20% (296 mil) destas propriedades não utilizam proteção individual. O Rio Grande do Sul é o Estado que mais aplica agrotóxicos, com 273 mil propriedades.
 
Campeão mundial
Tal cenário é do país que, em 2008, foi “consagrado” com o título de campeão mundial  de uso de agrotóxicos. Foram 673.862 toneladas de defensivos, o equivalente a cerca de  4 quilos por habitante. De acordo com o Sindicato Nacional da Indústria de Defesa Vegetal (Sindag), o faturamento da indústria química no ano passado no Brasil foi de US$ 7,125 bilhões, valor superior aos US$ 6,6 bilhões do mesmo setor dos Estados Unidos. Atreladas ao tamanho da área plantada, as maiores aplicações se deram nas culturas de soja, milho, cana-de-açúcar, algodão e cítricos.
 
De acordo com Gabriel Fernandes, da organização não governamental Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), tais números deveriam servir “como um grande sinal de alerta que indica a falência do modelo agrícola das monoculturas. Quanto mais veneno se usa, maior será o desequilíbrio ambiental. E quanto maior o desequilíbrio ambiental, mais veneno se usa”.
 
As consequências do uso dos agrotóxicos são inúmeras: coloca-se a saúde dos trabalhadores e consumidores em risco, e se contaminam o solo e a água. No caso da saúde dos trabalhadores, os riscos variam de acordo com tempo e dose da exposição a diferentes produtos. Assim, os efeitos podem ser agudos ou crônicos. O principal efeito  agudo são intoxicações, dores de cabeça, alergias, náuseas e vômitos. “Dependendo do tempo de exposição, pode haver uma intoxicação aguda completamente reversível, mas também pode haver efeitos subagudos que deixarão lesões neurológicas periféricas que podem comprometer tanto a parte da sensibilidade quanto a parte motora”, explica a  médica Raquel Rigotto, professora do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC).
 
De acordo com ela, os efeitos crônicos são mais difíceis de se identificar porque podem  ser atribuídos a outros quadros clínicos, “mas vão desde infertilidade masculina, má formação congênita, abortamento precoce, recém-nascido com baixo peso, cânceres – especialmente os linfomas –, leucemias, doenças hepáticas crônicas, alterações do sistema imunológico, possibilidade de mutagênese – que é a indução de mudanças genéticas que vão resultar em processos de cânceres ou em filhos com má formação
congênita –, problemas de pele e respiratórios, até praticamente todas as doenças neurológicas, tanto centrais quanto periféricas. É um amplo leque de patologias”, explica.
 
Dor de cabeça, olhos ardendo
Quem tem como rotina receber denúncias de trabalhadores reclamando de problemas de saúde decorrentes do manuseio de agrotóxicos é Abel Barreto, presidente do Sindicato dos Empregados Rurais de Duartina, cidade paulista localizada na região de Bauru. “Temos muita reclamação de gente que vai trabalhar na laranja e se sente mal. Eles ligam e dizem: ‘Estamos aqui trabalhando na laranja e o trator está na rua de cima passando veneno’. A maioria fala em dor de cabeça e ardor nos olhos”, relata.
Um dos casos que chegou ao sindicato de Duartina foi o das trabalhadoras Lindalva Zulian, de 38 anos, Rosimeire de Araujo, de 35, e Janaína Silva, de 25. As três trabalhavam numa fazenda de laranja no setor de inspeção, buscando localizar as plantas doentes para serem eliminadas.
 
Nascida em Duartina, Lindalva morou em São Paulo por muitos anos. Mas, nos últimos cinco, trabalhava em fazendas de laranja, alternando as funções de colheita e inspeção. O emprego, no entanto, rendeu-lhe problemas de saúde. Durante uma manhã do mês de junho deste ano, Lindalva e suas colegas faziam inspeção numa fazenda de laranja nacidade paulista de Espírito Santo do Turvo, quando o trator que aplica veneno passou pulverizando a mesma quadra onde as mulheres trabalhavam. “Eu comecei a ter tontura, dor de cabeça, ânsia de vomito.
 
Comecei a chorar de tanta dor. As outras também começaram a vomitar”. Depois de muita insistência, o funcionário da fazenda atendeu o pedido de levar as mulheres ao hospital. “A dor de cabeça era demais, muita ânsia de vomito, o nariz e a boca queimavam por dentro. Falta de ar, não conseguíamos respirar. Na hora, o médico disse: ‘tira essa roupa, toma um banho, nem eu estou agüentando o cheiro de vocês’. A gente estava toda envenenada”. As mulheres ficaram três dias internadas, e, quando tiveram alta, foram dispensadas ela fazenda. “O médico falou que a gente tinha que fazer tratamento, que não podia voltar a trabalhar onde tinha veneno dentro de três meses”.
 
Desde então, Lindalva está sem trabalhar. “Não posso mais com o cheiro de veneno. Qualquer coisa já começa a me queimar o nariz, me dá tontura e a cabeça começa a doer. O médico disse que a gente pode ter sintoma dentro de vários anos, que pode
aparecer algum tipo de doença porque fica tudo no sangue. A gente não sentiu só o cheiro, a gente inalou mesmo”.
 
Assim como Lindalva, Rosemeire também não voltou a trabalhar. “Não quero nem ver laranja”, diz. Já Janaína voltou para a colheita. “Não tem jeito, tenho que trabalhar. Mas até hoje eu sinto muita dor nos olhos. Nossa, quando eu forço a vista, dói para caramba”, diz, tentando segurar seu filho, que brinca com o gravador da reportagem.
 
Lista negra
Apesar de terem denunciado o caso, que está sendo investigado pelo Ministério Público, as mulheres estavam receosas de dar entrevista e serem perseguidas depois. “O medo é de entrar para a ‘lista negra’ das fazendas e nunca mais conseguirem emprego”, relata Abel Barreto, presidente do sindicato de Duartina. Segundo ele, a região é dominada por Cutrale, Coimbra, Citrosuco e Citrovita, as quatro maiores empresas do setor de  citricultura. “Se você for nas fazendas dessas empresas, vai ver todo mundo com equipamento de proteção. O problema é que a precariedade está nas fazendas que fornecem laranja para elas. Essa é a maneira de se isentarem de ficar com o nome sujo”, alerta.
 
O sindicalista aponta que uma das dificuldades para sistematizar as denúncias de intoxicação por agrotóxicos ocorre porque, quando as empresas têm equipe médica na fazenda, “muitas vezes os profissionais escondem os exames dos trabalhadores, dão um atestado de um dia quando deviam dar de dois”, explica. “E mesmo alguns médicos da cidade cedem à pressão das fazendas e amenizam os problemas, argumentando com a gente que as empresas são responsáveis por milhares de empregos”, relata.
 
Estudos relacionados aos impactos do manuseio dos agrotóxicos por trabalhadores indicam que mesmo com a utilização dos equipamentos de proteção individual, a aplicação não é segura. “Além do EPI, há uma série de outras exigências que qualificam
aquilo que se chama de ‘uso seguro de agrotóxicos’, mesmo que eu esteja falando isso com várias aspas de cada lado, porque eu não acredito nessa possibilidade”, explica Raquel. Um dos pré-requisitos é o respeito ao que se chama de “período de reentrada”após a aplicação do veneno, quando ninguém pode ingressar na área. “Para alguns venenos, o tempo é de três horas; para outros, são sete dias, isso varia. E quando a gente pergunta aos trabalhadores como se trabalha com esse período, que é uma exigência da legislação trabalhista, eles dizem que isso não é respeitado pelas empresas”.
 
Além disso, segundo a médica, a segurança dos equipamentos de proteção individual é muito relativa. “Eles são muito desconfortáveis e, quanto mais baratos, mais mal acabados. Incomodam, espetam, arranham. Nos climas quentes, são ainda mais difíceis de usar. É também muito complicado para as indústrias estabelecerem o ritmo correto da troca dos filtros das máscaras”, avalia. Outro problema recorrente é a absorção dos produtos pela pele: “O uniforme fica encharcado de agrotóxicos. E, em vez de ser levado para a casa do trabalhador e lavado junto com a roupa da família, como acontece muitas vezes, ele deveria ser lavado pela empresa. A família corre grandes riscos de ficar contaminada. Essa proposta do uso seguro é muito relativa”, alerta Raquel.
 
Exemplo dos limites do “uso seguro” dos agrotóxicos é o trabalhador Paulo Sérgio, morador de Duartina. Aos 37 anos, muitos de corte da cana e cinco de colheita de laranja, ele teve uma experiência complicada recentemente. Contratado pela empresa de laranja Coimbra para aplicar defensivos agrícolas, no terceiro dia de trabalho, ao aplicar o veneno Temic, Paulo passou mal. “Eu estava com todos os EPIs”. Mesmo assim, os equipamentos não impediram que o trabalhador sentisse muita ânsia de vômito, aumento da salivação e dor de cabeça. “Passei no médico e ele disse que eu estava
intoxicado”, conta.
 
Limite de tolerância
Se, para os trabalhadores, os prejuízos do contato com agrotóxicos são alarmantes, estes tampouco deixam de ser graves para os consumidores de alimentos que trazem resíduos de tais produtos. “Os problemas são análogos aos dos trabalhadores”, explica a médica Raquel Rigotto. “A intoxicação aguda é mais rara, mas a lista dos efeitos crônicos é a
mesma. A exposição do consumidor é menor, mas, mesmo assim, ele entra em contato com uma ampla gama de princípios ativos”, alerta. Segundo ela, a quantidade de alergias que cresce no mundo, o aumento dos casos de câncer e de doenças imunológicas são um alerta para que se discuta o conceito “limite de tolerância”, ou seja, “o paradigma do uso seguro, que pressupõe que haja uma certa quantidade de cada um dos produtos químicos que poderia ser absorvida diariamente pelo organismo sem que isso cause danos irreversíveis à saúde. Isso não existe”, enfatiza.
 
O “bom uso” dos agrotóxicos também é questionado por Wanderlei Pignati, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e estudioso do tema. “Não existe uso seguro de agrotóxicos. Isso não é só para quem manuseia o produto, é para toda a população das cidades pequenas. Quando se pulveriza no entorno, o ar leva o veneno para a cidade, a água fica contaminada...”, explica o médico, que, juntamente com a
Fiocruz, prepara um estudo sobre os impactos dos defensivos na saúde e no meio ambiente nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás. “Há resíduos de agrotóxicos em poços artesianos, córregos, rios, lagos. E o ar das cidades fica contaminado pela chuva”.
 
O professor, que possui doutorado na área de toxicologia, afirma que, nas cidades do Mato Grosso onde há plantações que usam venenos, nos últimos dez anos houve um aumento da incidência das intoxicações agudas, de casos de câncer, mau formação e de distúrbios neurológicos. “O consumidor também encontra resíduos de agrotóxico na água. Conforme a população vai bebendo e cozinhando, virão os efeitos crônicos. E, depois, vem os resíduos nos alimentos, como soja, milho, arroz, feijão”.
 
O professor também questiona a existência de um limite máximo destes resíduos que são permitidos nos alimentos. “Para nós, que somos da saúde, não era para ter nenhum limite máximo de resíduo permitido. Esses estudos são feitos em animais, e nos seres humanos há diferenças de sensibilidade”. Pignati também cita o aumento de casos de trabalhadoras grávidas que apresentam problemas de mau formação dos fetos, o que, em muitos casos, leva à perda do bebê. “Por isso, o aumento dos índices de aborto é muito grande”, revela.
 
Veneno no prato
De acordo com a última pesquisa realizada pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em 2008, o pimentão foi o alimento que apresentou o maior índice de irregularidades em resíduos de agrotóxicos. Mais de 64% das amostras de pimentão analisadas tinham problemas. O morango, a uva e a cenoura também apresentaram índices elevados de amostras irregulares, com mais de 30% cada.
 
Foram monitoradas 17 culturas (abacaxi, alface, arroz, banana, batata, cebola, cenoura, feijão, laranja, maçã, mamão, manga, morango, pimentão, repolho, tomate e uva). Das 1.173 amostras coletadas, 15,29% estavam irregulares quanto aos resíduos de venenos agrícolas.
 
Um dado preocupante do resultado da pesquisa é a existência de agrotóxicos não permitidos em todas as culturas avaliadas. Substâncias proibidas em muitas partes do mundo, como acefato, metamidofós e endossulfam, foram encontradas de forma
irregular nas culturas de abacaxi, alface, arroz, batata, cebola, cenoura, laranja, mamão, morango, pimentão, repolho, tomate e uva.
 
De acordo com Juliana Ferreira, advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), “o fato de o Brasil ter se tornado um grande consumidor de agrotóxico foi um alerta para os consumidores, que cada vez mais estão preocupados com as doenças que podem surgir com o tempo”. Segundo ela, uma das maiores dificuldades do consumidor é que “ele é muito mal informado, nem sabe o que está consumindo porque não há informação sobre a existência de resíduos de agrotóxicos nos rótulos dos produtos”, explica.
 
Em outubro, o Idec divulgou uma pesquisa realizada nas regiões sul, sudeste e centro-oeste com o alimento mais popular da cesta básica brasileira: o feijão. O resultado foi catastrófico. O Instituto analisou 33 marcas do alimento vendidas em diversas partes do país e constatou que quase um terço (nove delas) não poderiam ser comercializadas. Os produtos apresentavam resíduos de agrotóxicos proibidos pela Anvisa, e em sete deles foram encontrados insetos ou larvas vivas misturados aos grãos.

“Numa das marcas, foi encontrado o endossulfam, agrotóxico proibido na lavoura de feijão, e o inseticida 
clorpirifós em níveis acima do limite estipulado por lei. Como o feijão é um dos principais ingredientes da alimentação dos brasileiros, há uma grande preocupação em constatar isso e tentar divulgar para que os consumidores fiquem alertas”, avalia a advogada do Idec. Segundo ela, a entidade defende a reavaliação periódica de
agrotóxicos: “Os estudos se renovam, novas descobertas acontecem e, por conta disso, novos problemas causados pelos defensivos são constatados. Não é possível que o agrotóxico, que não é um insumo, mas sim um veneno, seja liberado e nunca mais revisto”.
 
Reavaliação
Após uma briga judicial ocorrida no ano passado entre a Anvisa e setores do ramo dos agrotóxicos, o órgão do governo está reavaliando 14 tipos de defensivos utilizados no Brasil. Destes, 12 já foram proibidos em países da União Europeia e da África, além dos Estados Unidos e China. Apesar do mercado europeu exigir o certificado EurepGap, pré-requisito das redes varejistas locais para assegurar a qualidade dos produtos agropecuários destinados ao consumo humano, “não há mudanças efetivas na prática das empresas. O que temos visto em outros é que esses selos têm um papel mais cartorial”, relata a pesquisadora Raquel Rigotto. Assim, para driblar a certifi cação, “as empresas tendem a usar produtos que têm uma ação rápida sobre as pragas, mas que apresentam uma degradação, uma meia vida rápida, de modo que não são mais identificadas quando elas chegam no importador. O problema é que as consequências ficam aqui”, comenta.
 
No caminho oposto, o Brasil importa produtos que são rejeitados no exterior, como é o caso dos inseticidas metamidofós e paration metílico, registrados como substâncias altamente tóxicas e usados em vários produtos comerciais. O primeiro foi encontrado irregularmente em culturas de alface e de morango nas últimas avaliações da Anvisa, além de em quantidade excessiva no tomate, onde tem uso permitido.
 
Outro dado que indica que o Brasil segue na contramão dos países desenvolvidos nessa questão é que, enquanto a União Europeia proibiu a pulverização aérea, o Brasil continua utilizando tal expediente, apenas com a exigência de que se mantenha uma distância de 500 metros de comunidades e 250 metros de mananciais de água.
 
Um caso exemplar dos danos causados como resultado da pulverização aérea ocorreu durante um acidente ambiental em março de 2006 no município mato-grossense de Lucas do Rio Verde, o segundo maior produtor de grãos do Brasil. A área urbana do município sofreu com uma pulverização que provocou prejuízos a produtores rurais e problemas na saúde da população. “Os aviões passam em cima das nascentes dos rios, dos córregos, afetando as casas, as cidades. E o vento leva todo o agrotóxico para dentro da cidade”, explica Wanderlei Pignati.
 
Modelo agroexportador
O uso abusivo de defensivos está relacionado ao modelo de monocultura agroexportadora adotado pelo Brasil, explica Raquel Rigotto. “Esse modelo depende dos agrotóxicos porque, quando se opta pela monocultura, ao mesmo tempo que se destrói a biodiversidade, se oferece às pragas todas as condições de elas se expandirem”.
 
Gabriel Fernandes, da AS-PTA, avalia que o aumento do uso de defensivos também está diretamente ligado ao aumento da utilização de plantas transgênicas fabricadas para serem mais resistentes à aplicação dos herbicidas. “Há uma questão intrínseca do modelo. Desde quando os agrotóxicos começaram a ser utilizados até hoje, houve um aumento no número de pragas, insetos e doenças que causam danos à agricultura”, analisa. Segundo Fernandes, o uso intensivo dos defensivos não dá conta de controlar esses fatores, que interferem na produção justamente porque tais produtos vão aumentando o desequilíbrio ambiental: “O agrotóxico gera insetos, doenças mais resistentes. E outros insetos que não causavam danos passam a causar, por conta desse desequilíbrio ambiental”, avalia.
 
Não por acaso, as maiores empresas que produzem herbicidas e inseticidas são as mesmas que controlam o mercado de transgênicos. “A tendência da indústria de agrotóxicos é casar as coisas, porque elas mesmas produzem as sementes e os agrotóxicos”.
 
É o caso da Monsanto, Basf, Dupont, Bayer, Bunge e Syngenta. “A Monsanto, que é a produtora do glifosato e que fabrica o Roundup, é a mesma que produz a soja transgênica, que vai usar mais glifosato. É a mesma indústria, que depois vai cobrar
royalties. Tem todo um interesse de seleção mundial de sementes que precisa de agrotóxicos e fertilizantes químicos”, alerta Wanderlei Pignati. Por exemplo, em 1994, foram consumidas cerca de 800 toneladas de herbicidas no Brasil e, em 1998,aproximadamente 1.400, coincidindo com o período de introdução da soja transgênica no país.
 
Gabriel Fernandes afirma que o fato de que “a cada 4 hectares de transgênicos plantados no mundo, três serem de sementes transgênicas feitas para uso casado com agroquímicos, explica como as empresas ampliam e mantêm tanto seu mercado de sementes quanto o de agrotóxicos”.
 
Segundo ele, as sementes transgênicas foram desenvolvidas exatamente para necessitarem da aplicação de agrotóxicos. “Como o mercado de sementes é altamente controlado, aos poucos, essas empresas vão tirando as sementes convencionais do mercado e colocando as transgênicas. Essa é a jogada de mercado”.
 
O fato de o Brasil ter se tornado o maior consumidor mundial de defensivos agrícolas foi comemorado pelas empresas transnacionais, que “acham que a utilização dessa enorme quantidade de fertilizante é sinônimo de progresso. Isso indica que tem algo errado no rumo que as coisas estão tomando”, acredita Fernandes.
 
Segundo ele, como o poder público estimulou a utilização desses insumos pela agricultura nas últimas quatro décadas, “ele tem responsabilidade de tentar minimizar seus impactos e, por outro lado, estimular outro modelo de agricultura que não seja tão dependente desse produto”.
 
Tatiana Merlino é jornalista
tatianamerlino@carosamigos.com.br

Rio: a falta dos ‘profetas da ecologia’

Leonardo Boff *

Entre os dias 5-8 de abril do corrente ano, o Estado do Rio de Janeiro (a cidade e outras vizinhas, especialmente Niterói) conheceram a maior enchente histórica dos últimos 48 anos. Houve grandes alagamentos nas principais ruas, deslizamentos de encostas, subida de um metro e meio da águas da Lagoa Rodrigo de Freitas provocada, em parte, pela elevação da maré que impediu o desaguar das águas pluviais. O mais terrível foi a morte de centenas de pessoas, soterradas por toneladas de terra, árvores, pedras e lixo.Entre outras, três causas parecem as principais causadoras desta tragédia, que, de tempos em tempos, se abate sobre a cidade, encantadora por sua paisagem que combina mar, montanhas e floresta, associada a uma população alegre e acolhedora.
A primeira são as enchentes propriamente ditas, típicas destas áreas subtropicais. Mas ocorre um agravante que é o aquecimento global. A tragédia do Rio deve ser analisada no contexto de outras ocorridas no Sul do país com tufões, prolongadas chuvas com enormes deslizamentos e centenas de vítimas e da cidade de São Paulo que durante mais de um mês seguido sofreu enchentes que deixaram bairros inteiros ininterruptamente debaixo de águas. Analistas apontaram mudanças nos ciclos hidrológicos causadas pelo aquecimento das águas do Atlântico, como vem ocorrendo no Pacífico. Este quadro tende a se repetir com mais frequência e até com mais intensidade à medida que o aquecimento global se agravar.
A tragédia climática trouxe à luz a tragédia social vivida pelas populações carentes. Esta é a segunda causa. Há mais de 500 favelas (comunidades pobres), dependuradas nas encostas das montanhas que serpenteiam a cidade. Elas não são culpadas pelos deslizamentos, como apontava o governador. Elas moram nestas regiões de risco porque, simplesmente, não tem para onde ir. Há uma notória insensibilidade geral pelos pobres, fruto do elitismo de nossa tradição colonial e escravagista. O Estado não foi montando para atender toda a população, mas principalmente as classes já beneficiadas. Nunca houve uma política pública consistente que inserisse as favelas como parte da cidade e por isso as urbanizasse, garantindo-lhes habitação segura, infra-estrutura de esgoto, água e luz e, não em último lugar, transporte. Sempre houve políticas pobres para os pobres que são as grandes maiorias da população e políticas ricas para os ricos. A consequência deste descaso se revela nos desastres que vitimam centenas de pessoas.
A terceira causa é a que eu chamaria de a falta de "profetas da ecologia". Observando-se ruas e avenidas inundadas, viam-se boiando por sobre as águas, todo tipo de lixo, sacos cheios de rejeitos, garrafas plásticas, caixotes e até sofás e armários. Quer dizer, a população não incorporou uma atitude ecológica mínima de cuidar do lixo que produz. Esse lixo entupiu os bueiros e outros sugadouros de águas pluviais, o que provocou a subida repentina das águas torrenciais e seu lento escoamento.
Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, nos oferece um belo exemplo. Sob a orientação de um irmão marista, Antônio Cecchin, que há anos vem trabalhando nos meios pobres em volta da cidade, organizou centenas de catadores de lixo. Fez levantar cerca de vinte grandes galpões, perto do centro, na ponta da Ilha Grande dos Marinheiros, onde o lixo é selecionado, limpado e vendido a diferentes fábricas que o re-utilizam.
Conscientizou os catadores de que com seu trabalho estão ajudando a manter a cidade limpa para que seja um lugar em que se possa viver com alegria. Orgulhosamente os catadores escreveram atrás de cada carrinho, em grandes letras, o seu título de dignidade: "Profetas da Ecologia".
Assumiram como ideal as palavras de um de nossos maiores ecologistas, José Lutzenberger: "Um só catador faz mais pelo meio-ambiente no Brasil do que o próprio ministro do meio-ambiente". Se existissem estes "profetas da ecologia" no Estado do Rio de Janeiro, as enchentes seriam menos avassaladoras e centenas de vidas seriam poupadas.
* Teólogo, filósofo e escritor

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A hegemonia chegou à Bacia do Rio Salitre

Em primeira instância, hegemonia significa simplesmente liderança, derivada diretamente de seu sentido etimológico (do grego hegemon líder).
O termo ganhou um segundo significado, mais preciso, desenvolvido por Gramsci para designar um tipo particular de dominação. Nessa acepção hegemonia é dominação consentida, especialmente de uma classe social ou nação sobre seus pares.
Historicamente, a Bacia do Rio Salitre é marcada por conflito de água. Em 1978 quando o Brasil passava a conhecer o conflito de terra no Paranapanema (SP), com a organização dos povos do campo pelo MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, na Bacia do Rio Salitre, que pertence ao São Francisco, e se encontra localizada na porção norte do Estado da Bahia em pleno semiarido, com um dos mais baixos níveis de IDH – Índice de Desenvolvimento Humano de 0,542 em cidades que compõem a Bacia, que é comparável a países da África, aconteciam as primeiras mortes pelo conflito de água do país.
As áreas aluvionares da bacia vêm sendo exploradas de longa data com agricultura irrigada. Com o grande aumento da demanda para fins agrícolas, a escassez de água no rio foi se agravando, principalmente no seu trecho final, próximo à cidade de Juazeiro.
Juntamente com a emergência de conflitos violentos pelo uso da água, surgiram várias organizações de pequenos agricultores reivindicando soluções, levando a prefeitura de Juazeiro a construir três barragens sucessivas para reter as águas do rio.
Isso não foi suficiente e posteriormente a CODEVASF, na década de 80, construiu mais seis barragens e as dotou de um sistema de abastecimento por bombeamento em sequência, a partir do rio São Francisco. São as chamadas barragens galgáveis.
Segundo o Cadastramento dos Usuários da Água da Bacia do Rio Salitre, realizado em 2001, através do Convênio CODEVASF/UFBA no contexto do desenvolvimento do Plano de Recursos Hídricos da Bacia, existem 198 propriedades com áreas atendidas pelas barragens galgáveis e uma extensão de 908 ha exploradas com irrigação. O volume total de reservação das nove barragens galgáveis do Salitrinho tem capacidade de 200.000 m3 e o sistema de bombeamento instalado não vem atendendo à demanda dos agricultores para a área irrigável.
Tudo isto deu origem a novos conflitos, o que obrigou o governo estadual a editar, em 1989, a Portaria 077, que limitou a superfície passível de ser irrigada nesta conturbada área, 3 ha por família.
De lá para cá pouco foi feito por este povo. Está acontecendo na Bacia do Rio Salitre a dominação dos Salitreiros pelo Lulismo, que recentemente veio à cidade de Juazeiro inaugurar o primeiro lote do “Projeto Salitre”, com a promessa de irrigar 40 mil ha para servir ao agrohidronegócio, ao grande capital, mas ao lado do Projeto Salitre, os Salitreiros só podem plantar 3 ha pela falta de água no rio.
O lote inaugurado é destinado a pequenos agricultores que tiveram acesso por processo de edital da CODEVASF, que sumariamente excluiu os Saliteiros que continuam convivendo com o histórico conflito por água.
Uma semana antes da entrega dos 255 lotes para famílias de outras regiões, outro conflito acontecia no Salitre quando foram derrubados 5 (cinco) postes de energia elétrica que alimentam as bombas. Como falta água, derrubam os postes da energia, assim os Salitreiros que vivem à montante do incidente não têm energia para captar água do rio e consequentemente os Salitreiros que vivem à jusante passam a ter o rio correndo e podem captar a água que necessitam para sua sobrevivência.
Concluindo o meu raciocínio, que talvez não seja o seu, o mesmo povo que há anos vive no conflito pela água é o mesmo povo que estava batendo palma para o Lula na inauguração do primeiro lote do Projeto Salitre. Eles estão sendo vítimas da dominação por dentro (hegemonia) que quando chega a este nível pouca diferença faz da dominação por fora (coação).
Almacks Luiz Silva é Gestor Ambiental e membro do MPA-BRASIL
Referências Gramsci, Antonio (1926-37) Cadernos da prisão Stillo, Monica (1998) Antonio Gramsci webpage
Salitreiro – Povo que habita as barrancas do Rio Salitre
Lulismo – Defensores de todos os atos e fatos provenientes do governo Lula

O destino dos canais da transposição do rio são Francisco, artigo de João Abner Guimarães Jr.


Apesar dos sucessivos apelos e alertas da inviabilidade ambiental, econômica e social do Projeto, insensível, o “rolo compressor” da transposição do rio São Francisco funcionou efetivamente, tornando as obras irreversíveis, principalmente quanto aos impactos negativos que dificilmente serão reparados pelos próximos governos.
Para isso, o Ministério da Integração responsável pela obra, contando com a retaguarda do Exército Brasileiro, mobilizou todo o parque industrial da construção civil pesada do Brasil, envolvendo na empreitada mais de 5.000 máquinas e 10.000 operários em três turnos de trabalho diário numa frente contínua de 400 km de obras. Essa mega infra-estrutura, nesse último ano de governo e de eleição presidencial, contando com recursos orçamentários vultosos e forte motivação política, deverá concluir grande parte das obras mais comuns e de maior visibilidade dos eixos Norte e Sul do Projeto, abrangendo a construção de centenas de quilômetros de canais intercalados por aquedutos sobre os cursos de água maiores interceptados pela obra e dezenas de pequenos reservatórios – obras essas, apesar da grande dimensão do seu conjunto, corriqueiras para as grandes empresas nacionais de construção civil envolvidas no projeto.
O projeto pode ser comparado a uma grande estrada formada por canais de terra de 25 m de largura revestidos por uma fina camada de cinco centímetros de espessura de concreto, alimentados por grandes bombas para elevar as águas entre os degraus sucessivos, praticamente horizontais e com dezenas de quilômetros de comprimento. Os canais se desenvolvem serpenteando morro acima as encostas da margem esquerda da bacia do rio São Francisco até alcançar os divisores d’água dessa bacia com as bacias contíguas. Pelo Eixo Leste, ¼ das águas do Projeto chegarão ao rio Paraíba e através do Eixo Norte, o maior com capacidade de transportar ¾ da vazão total, os canais ultrapassarão o divisor da bacia do rio Jaguaribe e seguirão pelos pontos mais altos até encontrar condições de perfurar os divisores das bacias dos rios Piranhas no estado da Paraíba e Apodi no estado Rio Grande do Norte.
Vale ressaltar, entretanto, que toda essa conjugação de esforços não deverá garantir o sucesso do projeto que estará condicionado ao ainda distante término de todas as obras e, principalmente, ao desenvolvimento dos projetos em fase embrionária de utilização das águas transpostas e a sua gestão. Podendo-se, nesse caso, destacar a construção ainda não iniciada de 35 km de túneis. Isto é: parafraseando Carlos Drummond, no final dos canais têm algumas serras.
Para exemplificar, a água do Eixo Norte chegará aos estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte através de 20 km de túneis, sendo o maior deles, o túnel Cuncas I com 9 m de diâmetro e mais de 15 km de comprimento, uma obra, por si só, sem precedente no País. Como referência, pode-se citar que o mais extenso túnel rodoviário do Brasil é o da pista descendente da Rodovia dos Imigrantes com 3,1 km e o maior túnel ferroviário da América do Sul é o Tunelão da Ferrovia do Aço em Minas Gerais, concebido a época do “Milagre Econômico” durante o regime militar com 8,7 km de extensão.
Apesar da propaganda oficial renomear “Projeto São Francisco: água a quem tem sede”, na prática, as obras reproduzem na íntegra o projeto tradicional do governo anterior, com a mesma infra-estrutura e orçamento, representando um dos maiores sistemas de bombeamento do mundo com capacidade de transportar 127 m³/s das águas do rio São Francisco para perenizar trechos inicia dos maiores rios da Região Nordeste Setentrional, visando aumentar precariamente os estoques ociosos de dez dos maiores reservatórios da região, reproduzindo, dessa forma, e em maior escala, o vício da “obra como um fim em si mesmo” da velha política hidráulica desenvolvida pelo Governo Federal no Nordeste Brasileiro desde o Império.
O projeto promete sustentar os consumos das bacias receptoras com as águas do rio São Francisco, desconhecendo, dessa forma, a grande infra-estrutura hídrica implantada em 100 anos de investimentos que tornou a região potencialmente auto-suficiente em recursos hídricos, capaz de atender plenamente todas as suas demandas, apenas necessitado para isso de uma infra-estrutura adequada de acesso as águas armazenadas nos grandes reservatórios espalhados por toda a região.
Vale ressaltar que, os consumos prioritários urbanos da região pretensamente beneficiada comprometem apenas 20% das águas regularizadas pelas grandes barragens, e que as bacias receptoras, principalmente do Eixo Norte, atualmente são grandes exportadores de água virtual via frutas, tais como melão e banana, e aquicultura de camarão, concorrendo com a bacia do rio São Francisco no mercado globalizado, com vantagens pelo menor custo de transporte e da água, insumo esse que será extremamente onerado pelo projeto, estima-se que a água da transposição terá um custo cinco vezes maior do que o atual custo praticado na região.
As obras e todo o processo de mobilização se concentram na bacia doadora, ficando a cargo dos governos estaduais desenvolverem os projetos de utilização das águas e assumirem a cara manutenção da grande infra-estrutura. Nesse cenário, vislumbra-se o grande risco de que concluídos os canais, dado o ritmo acelerado das obras, os mesmos deverão ficar ociosos e sem manutenção adequada por muitos anos.
Com o término das obras, junto com a saída das grandes empresas, cessará todo o processo de mobilização e os empregos temporários, ficando os canais com o seu destino incerto. Com certeza persistirá o lobby pela continuidade das obras, talvez essa seja a pior herança do projeto, fala-se na transposição do rio Tocantins para o rio São Francisco e na continuidade dos canais pelas bacias receptoras, e assim por diante, as obras da transposição não terminarão jamais, perpetuando a indústria das secas em prejuízo das políticas efetivas de desenvolvimento sustentado da Região.
João Abner Guimarães Jr. é Professor da área de Recursos Hídricos da UFRN

A FAIXA DE AREIA ESTÁ SUMINDO


Cadê o espaço para o banho de sol, para a caminhada no fim de tarde ou aquele futebolzinho na areia? Em pelo menos 15 praias de Santa Catarina, o mar está avançando e diminuindo, ano a ano, a faixa de areia.
Seis delas ficam em Florianópolis Canasvieiras, Armação, Naufragados, Pântano do Sul, Barra da Lagoa e Ingleses. No Litoral Norte, são os moradores de Barra Velha, Navegantes, Bombinhas e Balneário Piçarras que enfrentam o problema. No Sul, a areia está sumindo das praias de Imbituba, Ibiraquera, Rincão, Araranguá e Arroio do Silva.
A paisagem da Barrinha, uma das praias de Barra Velha mais afetadas pelo fenômeno natural, muda drasticamente a cada temporada. A joinvilense Vera Lúcia Braghin mora no local há cinco anos e acompanhou a mudança. Ela lembra que um sobrado à beira-mar chegou a ser destruído pela água.
“O mar avançou muito de uns tempos para cá. A estrada comprova isso. Antes, ela era perfeitamente transitável. Agora, está irregular”, diz.
Há cerca de oito anos, a praia Central de Barra Velha apresentava o mesmo problema, por isso, a faixa de areia foi engordada. Uma draga retirou a areia da lagoa de Barra Velha e a repôs no Centro, onde boa parte dos turistas passava a temporada.
A Fundação do Meio Ambiente de BarraVelha (Fundema) enumera as causas do problema: a migração natural da areia e os imóveis em áreas de preservação.
“A migração natural acontece em todas as praias. A areia é transportada sempre no sentido Norte/Sul e chega a se mover cem metros por ano. Temos um projeto antigo de retificação das praias, mas existe uma proposta de revê-lo”, explica o diretor administrativo da Fundema, Rodrigo Mazzoleni.
Para as construções irregulares só existe um remédio: conscientização ambiental. De acordo com Mazzoleni, a ocupação de dunas começou há décadas, quando a fiscalização ainda não existia. “Hoje é proibido. Naquela região, 90% das casas são construídas em dunas”, explica.
Mesmo sabendo que os imóveis estão em área irregular, a Prefeitura fez barreiras entre a praia e a rua. “As pessoas já estão ali, então, precisamos de cuidado”, justifica Mazzoleni.(Fonte: A Notícia / SC)

AUDIÊNCIA PÚBLICA - MINERAÇÃO

No dia 17 de março de 2010 aconteceu uma AUDIÊNCIA PÚBLICA, organizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DA BAHIA, pela Promotoria do Meio Ambiente da Comarca de Jacobina, na pessoa da Dra. Andréa Scaffi.


A AUDIÊNCIA PÚBLICA foi realizada na ACIJA - ASSOCIAÇÃO COMERCIAL E INDUSTRIAL DE JACOBINA, para tratar dos problemas causados pela mineradora Yamana Gold. Participaram do evento várias entidades da Sociedade Civil Organizada, autoridades, empresas,  moradores do entorno da Mina, vereadores e o povo em geral.


E a pedido de várias pessoas por uma cópia do material que apresentamos, estamos disponibilizando o trabalho.


ACESSE ESTE LINK -http://www.slideshare.net/almacks/audincia-pblica-mp-yamanna-pdf

“Com governo ninguém pode”: um olhar a partir do Nordeste sobre os desafios para os movimentos sociais do campo

Por: Ruben Siqueira
“O sistema só tolera / Dois tipos de componentes:/ Os tiranos que exploram 
E os subservientes. / Os que lutam por justiça / Serão sempre dissidentes.”
(Fábio Mozart, Biu de Pacatuba - Um herói do nosso tempo )
Caminhões a carregar terra fazem 170 viagens por dia, dizem os moradores; detonações na rocha cristalina, predominante no subsolo nordestino, produzem abalos que derrubam forros e racham paredes de casas; um ancião diz não dormir desde que tudo isso começou há quatro meses, passa a noite tossindo por causa da poeira; a escola foi transferida para uma casa apertada e precária; audiências judiciais em inédita rapidez “resolveram” as questões de desapropriação de terras, mas há descontentamento de proprietários e arrependimento de posseiros; os empregos prometidos são por pouco tempo, para os de fora e muito aquém da demanda suscitada; foram destruídas cisternas de placa, construídas em parceria com o governo federal, usadas para captar águas de chuva do telhado das casas, suficientes para consumo humano de uma família de cinco pessoas; empresários da irrigação se animam com a expectativa de expandir seus negócios; todos parecem saber que a água será cara e terão que pagar por ela, mas crêem que o governo vai facilitar as coisas; são raras as vozes críticas e quase nenhuma entidade se preocupa com a população impactada; a igreja católica está omissa ou alinhada a políticos na frente de apoio ao projeto; a impressão geral é de caos, mas a maioria das pessoas está entre resignada, desconfiada e esperançosa...
Isto está ocorrendo na comunidade de Quixabinha, município de Mauriti, no Ceará, uma vila remanescente da construção do açude (32 milhões de m3) e do perímetro irrigado (513 hectares) pelo DNOCS – Departamento de Obras Contra a Seca, em 1967. São 83 as famílias já removidas ou a serem removidas de suas casas e roças. As obras são da transposição de águas do Rio São Francisco para o chamado Nordeste Setentrional, que abrange os estados do Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco.
A situação de Quixabinha é exemplar do que o 3º Mutirão das Águas encontrou, entre 26 e 30 de novembro de 2009, ao longo do trajeto dos canais dos dois eixos – Norte e Leste – do projeto de transposição 2. A iniciativa reuniu 53 militantes de movimentos populares e organizações sociais articulados nestes estados e na bacia do São Francisco na luta contra o projeto 3. Tinha como objetivo conhecer a realidade alterada pela imposição do projeto e dialogar com a população sobre ela, introduzindo os elementos críticos sonegados pela propaganda oficial sobre a obra. Ao contrário dos dois mutirões anteriores, foi mínima a participação dos movimentos da Via Campesina. O governo pretende tudo resolver assentando 703 famílias em 18 VPRs – Vilas Produtivas Rurais, o novo nome das “agrovilas”; a impressão dos “mutirantes” é de que são maiores e mais diversos e sobre mais pessoas os impactos negativos diretos e indiretos.
O caso da transposição e da reação ou ausência de reação – conformismo e resistência 4 – ao projeto e seus impactos serve aqui de introdução a esta reflexão sobre o quadro atual e os desafios das lutas populares e dos movimentos sociais do campo, com um olhar a partir do Nordeste. Para este enfoque regional específico, partimos do pressuposto de que o Nordeste é estigmatizado pelo discurso da seca, que, baseado na suposta inviabilidade climática, visa sustentar, com relativo sucesso, a indústria, a política e a cultura da seca. E que isto, sendo uma estratégia regional de poder, tem historicamente funcionalidade nacional e mais ampla, que se recicla na contemporaneidade, na medida em que as elites se internacionalizam e encontram nos governos federal e estaduais sustento e incentivo. Parece-nos que, nos moldes limitantes atuais, subjugada está a sociedade brasileira, em geral e em especial no campo nordestino. Aqui, na melhor tradição de luta do povo da região primeira do Brasil, vinha-se de intensa atividade propositiva e mobilizadora, que se desencaminhou sob as políticas neoliberais, já no Governo FHC e mais no Governo Lula, sob a hegemonia do “lulismo”.
Neste contexto os movimentos populares e organizações sociais do Nordeste perderam a força capaz de modificar as relações sociais e ambientais no campo, opressivas e insustentáveis, no sentido da democracia agrária e da Convivência com o Semiárido, que significariam, no mínimo, cidadania política e justiça social e ambiental. No máximo, caminho para transformações mais profundas, estruturais. As exceções – e há – não alteram a regra, infelizmente.
Os desafios são maiores do que antes, quando a “esquerda” apenas aspirava ao poder do Estado, e a sociedade se via dele separada. E não havia ameaças de tão grande perplexidade como são as mudanças climáticas – seus impactos diretos sobre o Semiárido com a elevação da temperatura, aumento da desertificação e queda da vazão do Rio São Francisco – e as falsas respostas que se pretendem dar a elas sem abnegar de suas causas identificadas no irrefreável expansionismo neocapitalista.
Parâmetro da Convivência com o Semiárido
O Semiárido Brasileiro é a região de quase 1 milhão de km2, que abrange 1.133 municípios e corresponde a quase 90% do Nordeste e mais a região setentrional de Minas Gerais, totalizando uma população de mais de 21 milhões de pessoas, 11% da população brasileira. O Nordeste todo, com 53,5 milhões de habitantes, representa 28% da população brasileira e tem quase a metade dos pobres do Brasil; por isso recebe 52% do “Bolsa-Família”, algo em torno de R$ 5 bilhões. 
Mesmo no auge da SUDENE, em que a economia nordestina cresceu mais que a nacional, a situação dos pobres não melhorou. Mesmo atualmente, com a alavanca operada pelo crescimento econômico nacional, que repercutiu favoravelmente na região, o quadro de dependência econômica e social não se modificou substancialmente. Os equivocados caminhos desenvolvimentistas não fazem bem ao Nordeste, menos ainda ao Semiárido.
Crítico desta trajetória, o professor da UNB – Universidade de Brasília, Roberto Marinho Alves da Silva, distingue três concepções de desenvolvimento da Região Semiárida:
“combater as secas e os seus efeitos; aumentar a produção e a produtividade econômica na região, sobretudo com base na irrigação; e conviver com o Semiárido, combinando a produção apropriada com a qualidade de vida da população local” 5.
As três concepções co-habitam nas políticas públicas atuais e, a despeito dos avanços, predomina a perspectiva que mescla combate à seca com produtivismo econômico baseado na irrigação voltada para exportação, para o que o Estado continua a promover grandes obras hídricas como a transposição.
No entanto, segundo o professor, nesta região se operava uma das mais avançadas tentativas de tornar sustentável o desenvolvimento no Brasil, um emergente “novo paradigma civilizatório”:
“(...) a sustentabilidade do desenvolvimento, como um novo paradigma civilizatório, vem sendo traduzida na proposta de convivência com o Semiárido, orientando um conjunto de medidas socioculturais e econômicas capazes de modificar os padrões de apropriação, reprodução e gestão dos bens e recursos disponíveis, com a finalidade de transformação das condições de vida da população sertaneja” 6.
A significar e propor este paradigma, forças sociais propositivas e empreendedoras de uma rica diversidade de experiências de convivência congregaram-se, em 1999, na ASA – Articulação do Semiárido Brasileiro, que chegou a reunir mais de 700 entidades do mais amplo espectro da sociedade civil. A ASA tenta fazer do processo de construção das cisternas familiares de água de chuva, através do P1MC – Programa Um Milhão de Cisternas, mote de um processo educativo e mobilizador para a Convivência com o Semiárido. Até 13/11/2009, foram construídas 286.519 cisternas.
Com a transposição de águas do Rio São Francisco na pauta, apresentada como solução para a seca – a sede de 12 milhões, segundo a propaganda oficial – setores da ASA, baseados no sucesso do P1MC e inspirados em experiência do semiárido chinês 7, propuseram, no início do primeiro Governo Lula, que com os recursos da transposição se implementasse o P1+2. O Programa “Uma Terra e Duas Águas” visava que as famílias camponesas do Semiárido Brasileiro se mobilizassem para ter uma porção suficiente de terra e formas adequadas de captação e manejo de água para consumo humano e produção agropecuária 8.
Estes programas originários, de iniciativa da sociedade civil, com forte pertinência sócio-ambiental e político-cultural, baseavam-se em três argumentos fundamentais. Primeiro, que o Semiárido tem as águas suficientes para um desenvolvimento sustentável capaz de interagir favoravelmente com a natureza específica da região e proporcionar vida digna para sua grande população rural. Segundo, que o problema maior do Semiárido não é água, mas terra, já que predominam o latifúndio e o minifúndio, quando de acordo com a EMBRAPA são necessários no mínimo 300 hectares para uma família viver bem e sustentavelmente na região 9. Terceiro, que o maior déficit nordestino é o de poder político popular, o que requer processos educativos de empoderamento das comunidades e organizações sociais, de modo a protagonizar o desenvolvimento e a estreitar o espaço de manobra das elites corruptas e corruptoras.
Ao se viabilizarem por entre os (des)caminhos do Estado como centro das políticas públicas, estes programas tiveram que se adequar às injunções políticas e aos interesses partidários, o que os fez perder parte de seu potencial transformador. Ao conseguirem a efetividade viabilizada pelos setores que controlam a ASA – o que implicou em recursos que, além dos públicos, vieram também de entidades como Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Paulista e Febraban (Federação Brasileira de Bancos) –, foram submetidos a um horizonte mais estreito de mudanças. O P1MC enfraqueceu a perspectiva de formação e mobilização e o P1+2 nunca encarou o problema central da terra.
Reforma agrária ainda?
Sendo terra (e poder) o problema, é notório que as lutas pela reforma agrária e pela terra em geral tenham sido uma constante histórica no Nordeste, inclusive no Semiárido. Se bem que as lutas camponesas no Brasil sempre foram por mais que terra, pelo(s) direito(s) – educação, saúde, previdência, condições adequadas e justas de produção e comercialização, liberdade política, etc. –, pela libertação do cativeiro que se perpetuou pós-Abolição no continuísmo das relações de dominação. Mas a situação de desigualdade no acesso a terra e à cidadania quase nada se alterou ao longo dos anos, a despeito de todos os assentamentos feitos em nome de uma reforma agrária que nunca existiu.
O recentemente divulgado Censo Agropecuário 2006 revela que o Nordeste detém o maior número de estabelecimentos rurais (2,4 milhões) e a menor área média (31 hectares). Cerca de 47% destes estabelecimentos têm menos de 10 hectares. Cerca de 90% com área inferior a 100 hectares detêm apenas 27% da área total dos estabelecimentos. Já os com mais de 1 mil hectares representam cerca de 1% do total. Toda a reforma agrária propagandeada por sucessivos governos desde a Ditadura Militar não democratizou o acesso a terra, na região de maior concentração camponesa do país.
A resposta dos camponeses tem sido a resistência na posse quando ameaçada e a luta de conquista de assentamentos da reforma agrária oficial através das ocupações de trabalhadores rurais sem terra. Os movimentos de ocupação em 2008 eram 93, o que denota alta demanda e vitalidade, mas também fragmentação. Ainda que sempre presente, a luta pelos territórios tradicionais – indígenas, quilombolas, fundos e fechos de pasto 10, pescadores e extrativistas, etc. – tem sido maior no período recente. Os povos indígenas silenciados no Nordeste vivem verdadeira primavera de ressurgimento: eram 10 etnias reconhecidas em 1950, passaram a 23 em 1994 e a 37 em 2002. A visibilidade dos povos tradicionais tem a ver não só com afirmação da identidade étnico-cultural e territorial, mas também com as crescentes ameaças por parte dos empreendimentos agrícolas, agroindustriais, minerários e de infraestrutura (barragens, ferrovias, transposição, etc.). “Entraves ao crescimento” foi como o Presidente Lula se referiu às comunidades tradicionais, entre outros 11. A Geografia, principalmente, tem chamado os movimentos do campo como sócioterritoriais, o que amplia para eles o horizonte, o potencial e o desafio. Há razões suficientes para acreditar que o século XXI no Brasil será indígena e negro. E no continente, afroameríndio.
Nos anos 2000 o Nordeste tem concentrado em torno de 1/3 das famílias em ocupações de terra no país, com número bem abaixo e decrescente de famílias assentadas. Segundo os dados da CPT, o Nordeste teve em 2009 (dados até novembro), em relação a 2008, redução no número de conflitos no campo, de ocupações e acampamentos, e, também, no número de assassinatos – 6 para 4 – e de tentativas de assassinato – 11 para 8. Mas aumentaram o número de trabalhadores presos – 8 para 49 – e agredidos – 39 para 89; o de famílias expulsas – 772 para 969; e o de famílias despejadas, de 1.195 para 3.830,  mais que o triplo 12. De par com a criminalização inédita dos movimentos sociais, do campo em especial e do MST em particular, a violência de sempre contra os camponeses não arrefece, antes recrudesce, com o fim de facilitar nova expansão do capital no campo. Não é por acaso que a reforma agrária caiu de pauta e também que 58,9% dos trabalhadores escravizados no campo brasileiro venham da região Nordeste.
A opção desenvolvimentista é pela expansão do agronegócio (90% do crédito público) visando exportação decommodities agrícolas e produção de agrocombustíves, sobretudo etanol de cana-de-açúcar, bem como a expansão da mineração, das barragens e das obras de infraestrutra. O Nordeste Semiárido, além de continuar produzindo mão-de-obra, em conseqüência deste novo ciclo indutor de migração e liberação da terra, contribui sobretudo com fruticultura irrigada, agrocombustíveis e carcinicultura.
Neste quadro, de multiplicação das “vítimas do desenvolvimento”, o que se poderia (e se desejaria) esperar era um acirramento das lutas sociais, e não o seu refluxo. Mas engendrou-se o lulismo.
Lulismo
Mais que a sobrevida, a consolidação do neoliberalismo no Brasil se deu pelas mãos de um governo que, em sua origem remota, significou o seu avesso – o sonho de liberdade, justiça, participação e controle da sociedade e do poder do Estado pelo povo trabalhador. O líder sindical Lula arrematou a construção do consenso conservador pela conciliação das classes, sendo o fiador personalizado de um pacto implícito em que capital e trabalho e massas populares parecem concordar que cada qual tenha sua parte, ainda que o primeiro fique com a maior parte, nada tendo que ser modificado estruturalmente. São emblemáticos, por um lado, o PAC – Plano de Aceleração do Crescimento e, por outro, o Bolsa-Família, o Luz para Todos, a explosão do consumo de massas.
Tem-se chamado de lulismo a esta versão própria do jogo político brasileiro que o Presidente Lula conseguiu articular para controlar o Estado e exercer de fato a Presidência. Por um lado, barganha com os partidos e lideranças fisiológicas da pior tradição brasileira; por outro, mantém a sociedade organizada, em geral, as ONGs e movimentos sociais, em particular, sob controle, através de políticas públicas assistencialistas e pseudo-participativas e fartas em repasse e disputa de verbas.
A facilitação de recursos públicos favorece a tendência de movimentos e entidades em tornarem-se organizações dispendiosas. Alguns movimentos recolhem-se ao âmbito interno da formação de quadros, preparando vanguardas para o momento em que, por força, talvez, de desgaste interno ao bloco do poder, mude a correlação de forças sociais e políticas, tida no momento como desfavorável para um reacenso das massas... A CPI do MST no Congresso visa estancar o fluxo de recursos públicos que subsidia esta estratégia. A atual onda de criminalização quer completar a neutralização do que poderia atrapalhar o expansionismo do capital por sobre territórios. O lulismo joga com maestria as peças deste xadrez.
Cooptação e desmobilização acontecem, por exemplo, com a ASA, que, apesar do potencial de mais de 700 entidades filiadas, acabou perdendo a dimensão de transformação da antiga lógica que continua a reger o Semiárido e se recicla no projeto da transposição, que ela condena, mas não enfrenta nem combate. Certo recuo e disciplinamento acontecem também com os movimentos da Via Campesina, acertadamente dedicados às grandes questões do oligopólio empresarial e tecnológico transnacional na agricultura, mas em geral fragmentados e distantes do cotidiano de luta das comunidades camponesas vítimas do PAC e da expansão do agronegócio e da mineração.
Desafios
Diante deste quadro, em que se acumulam antigas e novas demandas populares, não são poucos os desafios a enfrentar por quem ainda crê na luta e têm vontade de lutar. Se não há condições objetivas para rupturas com o estado de coisas atual, mudança radical de posições – do que se pode duvidar –, são possíveis ao menos passos seguros de recuperação da liberdade e autonomia perdidas, promovidos e promotores da utopia revigorada. Se o tempo é de acumulação de forças, tantas vezes repetimos Florestan Fernandes, mas temos que segui-lo de fato: "Não se deixar cooptarnão se deixar esmagar. Lutar sempre. Conquistar, na luta, vitórias reais com o povo".
Atendo-nos ao âmbito dos aspectos referidos acima, podemos sugerir um elenco, em 13 pontos, dos principais desafios para os movimentos sociais do campo em todo o país e no Nordeste (especificamente os três últimos).
  1. Estabelecer estratégias de autonomização em relação ao Estado lulista, ainda que se continue a receber os recursos aos quais se pode ter por direito, legal e legitimamente, sem o ônus da cooptação, com a transparência que supere o risco da corrupção;
  2. Questionar profundamente a participação nos espaços de construção e controle de políticas públicas, na franja entre Estado e Sociedade, distinguindo atribuições e autonomias;
  3. Ressignificar e revalorizar a reforma agrária, incorporando as dimensões territoriais, étnico-culturais, ecológicas e agroecológicas, a luta pelo limite da propriedade da terra e pela revisão dos índices de produtividade 13;
  4. Intensificar o diálogo e a troca de saberes com e entre experiências de comunidades e territórios tradicionais (indígenas, quilombolas, extrativistas, pescadores, etc.);
  5. Incorporar definitivamente em todas as dimensões e setores da vida e da luta a igualdade de gênero, de etnia e de geração;
  6. Promover e multiplicar iniciativas agroecológicas, que se disseminem e alcancem escala suficiente para disputar os rumos da agricultura e da produção alimentar, impondo-se como a alternativa adequada ao enfrentamento das crises climática e alimentar;
  7. Estreitar relações e intercâmbios de experiências com os movimentos sociais e políticos, camponeses e indígenas, dos países andinos e amazônicos que trilham caminhos mais coerentes com suas raízes étnicoterritoriais e históricas, em perspectiva ecológica (“bem-viver”);
  8. Aproximar as questões agrária e urbana, na prática concreta articulada dos movimentos populares e organizações sociais do campo e da cidade;
  9. Desenvolver estratégias de atração e envolvimento da nova classe média emergente para ampliar a conquista de direitos e transformações sócioeconômicas mais profundas;
  10. Somar forças para uma resistência articulada contra a criminalização dos movimentos sociais e dos defensores dos direitos humanos;
  11. Retomar a radicalidade da proposta de Convivência com o Semiárido, que não contemporiza com soluções compósitas e complementares ao novo ciclo da indústria, da política e da cultura da seca;
  12. Potencializar no Semiárido as experiências de educação contextualizada e para a Convivência;
  13. Denunciar e combater a transposição como estratégia de reciclagem dos antigos esquemas de poder das elites, apoiar as vítimas e antecipar-se no trabalho de base e na comunicação social à questão do custo da água repassado ao povo.
A Via Campesina Internacional, reunida em Jacarta, no dia 6 de novembro, em preparação à participação dos camponeses na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (Copenhagen, 7-18/12/2009), declarou:
As vozes do povo podem entoar muitas diferentes melodias, podem sussurrar ou gritar, cantar ou tocar música, elas falam e debatem. A história dos movimentos sociais nos mostra como os protestos podem também adquirir formas muito diversas. Para a Via Campesina, a desobediência civil foi sempre parte da estratégia, junto de debates, conscientização política e promoção de outras alternativas reais em nosso campo, em apoio à soberania alimentar. (...) Nós achamos que uma democracia sólida só pode se fortalecer permitindo aos povos do mundo que defendam e implementem a justiça climática, a justiça alimentar e a justiça social. 14
Movimentos sociais sem “movimentação” podem ser qualquer coisa política menos “movimento”. Há quem já apregoe o fim de sua era 15. Seja como for, no Nordeste, como de resto em todo o país, expressões como “ninguém pode com governo”, de antigas e angustiantes reminiscências e tantas vezes ouvida da boca de indefesas vítimas da transposição, durante o 3º Mutirão das Águas, soam como escandaloso fracasso da nossa incipiente e débil democracia e um permanente desafio às consciências livres e à recriação permanente da luta social.
Biu da Pacatuba, apelido de Severino Alves Barbosa, foi um dos principais líderes das Ligas Camponesas na Paraíba. O cordel citado pode ser lido em http://recantodasletras.uol.com.br/cordel/1835613.
São centenas de entidades em torno da Frente Cearense Por Uma Nova Cultura de Água e Contra a Transposição, da Frente Paraibana em Defesa da Água, da Terra e do Povo do Nordeste, da Articulação Popular São Francisco Vivo (MG, BA, PE, AL e SE), da CPT – Comissão Pastoral da Terra (MG, BA, CE, PE, RN e PB) e da Diakonia no RN.
Segundo Marilena Chauí, um misto nem sempre contraditório entre conformismo e resistência está na raiz da perpetuação das relações de dominação que marcam o convívio social no Brasil. Cf. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 6ª ed., 1994.
Entre o combate à seca e a convivência com o semi-árido – transições paradigmáticas e sustentabilidade do desenvolvimento. Brasília, UNB, Tese de Doutorado, 2006, p. 25, (mimeo).
Op. cit., p. 28.
São formas tradicionais de uso comum da terra, no Semiárido, sobretudo para pastagem, sendo “fundo” quando predominam caprinos e “fecho” quando predomina o gado vacum. Também chamadas “solta” ou “larga”, nomes também usados, porém, mais comuns em outras regiões.
Rudá Ricci, Fim da era dos movimentos sociais brasileirosFolha de São Paulo, 20/10/2009.


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