A divulgação dos resultados preliminares do censo agropecuário 2006 precisa de muito estudo e análise para “tirar” dos números o seu significado político e sociológico na compreensão da dinâmica de desenvolvimento da estrutura agrária e os resultados da política agrícola das últimas duas décadas. Contudo, alguns elementos são de fácil entendimento, embora de difícil aceitação.
Os números divulgados confirmam o que os movimentos sociais, em especial o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, vêm debatendo e apresentando como causa da alta concentração de terras no Brasil: a ausência de uma política agrária que enfrente as oligarquias do campo e um modelo agrícola centrado na grande empresa capitalista em detrimento do modelo da agricultura familiar.
Gestado pelo mercado, com apoio do Estado, nos anos de ouro do neoliberalismo no Brasil, o agronegócio para produção de commodities se orgulha da modernização que promoveu no campo substituindo o jegue, o boi e o jeca pelo trator, colheitadeira e agrotóxicos em larga escala. No entanto, bastou o governo federal acenar com a possibilidade de cumprir a legislação e rever os índices de produtividade das propriedades rurais para que a bancada ruralista, no senado e na câmara dos deputados, saísse em gritaria uníssona de que querem roubar a terra de quem trabalha.
Essa cortina de fumaça que os deputados e senadores, defensores do arcaico modelo agrário e da “improdutiva” política agrícola baseada na grande propriedade e nos agrotóxicos, montaram serviu para esconder o que o censo agropecuário acabou por revelar: a segurança alimentar dos brasileiros é garantida pela pequena propriedade familiar. Se dependesse do agronegócio, de formato capitalista, o povo brasileiro morreria de fome porque só poderia comer os restos da exportação. A lavoura capitalista não produz alimentos, produz mercadorias.
A novidade do censo agropecuário 2006 foi realizar uma radiografia mais completa e em conformidade com a lei que define agricultura familiar. Com isso foi possível fazer comparações com os resultados de 1985 e 1996 e apresentar uma fotografia onde a agricultura familiar aparece com sua cara própria. Os dados apresentam uma realidade da agricultura familiar que devem servir de base para uma reorientação completa da política agrícola e agrária em curso no país. Senão vejamos: apesar de representar 84,4% do total de estabelecimentos rurais ou 4.367.902 propriedades, a agricultura familiar ocupa uma área de apenas 24,3% da área total dos estabelecimentos rurais cadastrados. Ainda assim, nessa pequena lavoura se produz 38% do valor bruto da produção agrícola do país e emprega 74,4% da mão de obra no campo. As propriedades com menos de 10 hectares ocupavam em 2006 apenas 2,7% (7,8 milhões de hectares) da área total dos estabelecimentos rurais, enquanto os estabelecimentos com mais de 1.000 hectares concentravam mais de 43% (146,6 milhões de hectares) da área total. Se tomarmos o número total de estabelecimentos (cerca de 5,2 milhões de propriedades), próximo de “47% tinham menos de 10 hectares, enquanto aqueles com mais de 1.000 hectares representavam em torno de 1% do total, nos censos analisados” resume o informe do IBGE.
Mesmo cultivando uma área menor com lavouras (17,7 milhões de hectares) a agricultura familiar responde por 87% da produção de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% da produção de milho e também é responsável por 50% da produção de frangos, 59% da produção de suínos e 30% da produção bovina, apesar de cultivar uma área menor com pastagens. O censo revela ainda que o valor bruto da produção da agricultura familiar e sua participação no valor bruto da produção total obteve crescimento de 38% para 40% em 10 anos (1996-2006). Segundo informativo do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA: “A agricultura familiar gera um VBP [valor bruto de produção] de R$ 677,00/ha que é 89% superior ao gerado pela agricultura não familiar (R$358,00/ha).”
Entende-se agora a virulência dos ataques dos latifundiários e seus aliados às propostas da sociedade civil para limitar o tamanho das propriedades no Brasil e a proposta do governo federal (MDA) de rever os índices de produtividade, pois qualquer cidadão medianamente informado é capaz de concluir que existe no país uma concentração absurda da terra que é contra o processo de desenvolvimento sustentável. O índice de Gini do uso do solo no Brasil é de 0,872, muito próximo de um, o que indicaria o nível máximo de concentração.
Portanto, não há o que se comemorar. A tentativa do governo, na divulgação do censo, de “dourar a pílula” apresentando os exitosos números da agricultura familiar como uma prova de que a política de crédito e a reforma agrária começam a dar frutos é outra cortina de fumaça para esconder a ineficácia da política agrária e a quase ausência de uma política agrícola específica para a produção de alimentos da cesta básica. Verdade seja dita, os agricultores familiares é que apesar do mercado e apesar do governo viabilizaram suas propriedades como equipamento altamente produtivo. Evidente que o censo 2006 avalia apenas três anos do atual governo, talvez por isso se possa autorizar o discurso: “se não fosse nós seria pior”. Mas querer atribuir a sobrevivência da pequena propriedade familiar à política agrária e agrícola deste ou dos governos passados é, sem sombra de dúvida, um exagero. Analisando a repartição do orçamento público, especialmente no período pesquisado, verifica-se uma distribuição francamente desproporcional em favor do agronegócio.
Antes mesmo da divulgação do censo agropecuário 2006, um estudo, resultado de tese de doutorado do geógrafo Eduardo Girardi, intitulado Atlas da questão agrária brasileira, lançado no primeiro semestre deste ano, mostrava que “Em 2003, os pequenos imóveis, com tamanho médio abaixo de 200 hectares, representavam 92% do total de propriedades, mas ocupavam apenas 28% da área agrária. As propriedades de médio porte, de 200 a 2 mil hectares, respondiam por 6% do total de imóveis e 36% da área. Já aquelas acima de 2 mil hectares, embora não chegassem a 1% do total, ocupavam 35% da área do setor”. Com pequenas variações regionais que não alteram o quadro geral, o censo 2006 confirma os resultados do estudo de Girardi. O que isso implica para o debate da reforma agrária?
A legislação brasileira proíbe desapropriação de área menor que 15 módulos fiscais (que varia de região para região, mas situa-se, na média, em torno de 500 hectares). Sabendo que existem aproximadamente 5,2 milhões de imóveis rurais cadastrados no país e aceitando que todas as médias propriedades (acima de 500 hectares e menor que 2000 hectares) cumprem sua função social, ou seja estão dentro dos índices de produtividade atuais e respeitam a legislação ambiental, restam para desapropriação os imóveis rurais acima de 2000 hectares, que representam menos de 1% do total de imóveis rurais, ou seja, em torno de 50 mil propriedades.
Então toda a gritaria dos deputados, senadores associações de produtores rurais é para defender o “direito de propriedade” de 50 mil privilegiados contra o “direito de propriedade” de mais de 4 milhões de pequenos e médios proprietários e sem terras? Absurdamente é isso. Na democracia dos atuais deputados e senadores 50 mil proprietários são mais donos do Brasil que os outros quase 5 milhões.
A estrutura agrária tem intima ligação com a política agrícola. A concentração de terra – confirmada pelo Censo 2006 deriva da necessidade que tem o agronegócio voltado para exportação — soja, cana-de-açúcar e pecuária — ocupar grandes extensões em planícies que facilitem o uso intensivo de máquinas e agrotóxicos para produção em escala. Para competir lá fora o agronegócio precisa destruir aqui dentro. Essa concentração continua expulsando os trabalhadores do campo. Em dez anos, deixaram de trabalhar nas lavouras 1,363 milhão de pessoas. Permanecem ainda 16,5 milhões ou 18,9% da população ocupada do país em 2006.
O discurso dominante não vê limites para as “conquistas cientificas” que, descobertas hoje no laboratório, amanhã já se transformaram em tecnologias para produção de mercadorias. Clonagem, transgenia, agrotóxicos, tudo é possível. Não há barreira ética e moral capaz de frear “a marcha do progresso”. A agricultura familiar aparece para estes senhores pseudocientistas e “mudernos” como uma ingênua nostalgia bucólica. Paradoxalmente, aqueles que acham tudo possível na ciência e na moral acreditam ser impensável uma outra estrutura agrária e uma outra política agrícola. Sua condição política e cegueira ideológica, sim, é que atravancam o desenvolvimento de um país com soberania alimentar. É o latifúndio pós-moderno onde tudo é possível e relativo menos a contestação da absurda concentração de terras.
Mas, se “ouvirmos” os números do censo 2006 e imaginarmos um país com distribuição de renda, sem fome, com menos agrotóxicos, preservando as florestas é inexorável mudar de rumo. É uma imposição social e política desconcentrar a propriedade da terra. Sem isso não há desenvolvimento social, apenas mais concentração de terra e renda.
O primeiro passo é resolver rapidamente o problema dos acampamentos da reforma agrária. Segundo dados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terras existem hoje 230 mil famílias acampadas. Como já avaliamos, se adotássemos uma política agrária determinada a desconcentrar a propriedade da terra teríamos de intervir naquelas com mais de 1000ha que representam menos de 1% do total de propriedades no Brasil. Assim, para assentar as 230 mil famílias, considerando um módulo médio de 25ha por família seriam necessários menos de 6 milhões de hectares o que representa menos de 4% do total da área ocupada pelas fazendas com mais de 1000ha. Só para exemplificar: o paranaense Eraí Maggi Scheffer comanda uma empresa que planta em 250 mil hectares dos quais 100 mil são próprios e o restante arrendado de outros agricultores. Se, ceder 4% da sua área para reforma agrária o “rei da soja” ainda terá ao seu dispor 240 mil hectares e nos 10 mil hectares disponíveis à reforma agrária daria para assentar 400 famílias em lotes de 25ha cada. Pergunto: foi agredido o senhor “rei da soja” em seu direito de propriedade e de produzir? Repartir a produção de 10 mil hectares com mais 400 famílias irá dissolver o negócio do senhor “rei da soja” pela concorrência? Ora, não estamos falando de uma revolução no campo, de uma coletivização forçada, mas de multiplicar o número de proprietários com a clara intenção capitalista de ampliar o número de unidades produtivas e diversificar a oferta de alimentos. Trata-se de uma reforma agrária que é realidade em todos os países onde houve uma revolução burguesa (capitalista). É claro que essa é uma exigência mínima, porque o que deveríamos fazer é cumprir a constituição.
Há muito que a legislação brasileira não reconhece mais o direito de propriedade da terra mas a sua função social, que significa que um pedaço de terra é uma unidade produtiva, ou seja, deve produzir alimentos ou seu dono não pode exigir a propriedade sobre a mesma. Ainda assim, a força desta minoria é tão grande que a própria lei não é aplicada. Tribunais crivados de latifundiários ou de amigos deste seleto grupo de ricos que se acham “donos do Brasil” insistem em interpretar a constituição de acordo com suas conveniências e a criminalizar os movimentos que lutam pela terra.
No entanto, como a constituição do país prevê o direito de produzir, de ter um pedaço de terra que cumpra com sua função social, os movimentos sociais não fazem mais que exigir que se cumpra a lei. Isso os legitima sim a ocupar, resistir e produzir. Mas, para além da lei, a legitimidade e necessidade de sua luta se estriba num direito humano fundamental: o direito a vida; deles e de todos os brasileiros. Porque, como revelou o censo 2006, se não fosse a pequena propriedade familiar e a importação de alimentos (um absurdo para um país como o Brasil) os brasileiros passariam fome.
A sociedade brasileira se quer deixar para trás o desonroso título de país com o quadro de segunda maior concentração da propriedade fundiária em todo o planeta (atrás apenas do Paraguai) e caminhar para uma democracia de verdade, precisa dar um basta a estes privilegiados. É urgente que se estabeleça um limite do tamanho máximo da propriedade rural e que se assente, pelo menos, as famílias acampadas.
Francisco Xarão, professor de Filosofia da Rede Municipal de Porto Alegre; Mestre em Filosofia política pela UFMG e aluno do PPG em Filosofia da UNISINOS.
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