Nota Pública: Catástrofes nem tanto Naturais

Produzida por organizações da sociedade civil pertencentes à ABONG, Articulação AIDS Pernambuco, Articulação de Entidade da Zona da Mata, Fórum de Mulheres de Pernambuco e Fórum Estadual da Reforma Urbana sobre as enchentes ocorridas no estado. Essas organizações estão trabalhando conjuntamente tanto nas questões emergenciais relativas ao atendimento às vítimas, com doações de materiais de segurança, roupas, alimentos etc.; como pretendem abrir um diálogo político sobre as causas e conseqüências desta tragédia.
Dez anos atrás, as populações da Zona da Mata de Pernambuco sofreram com enchentes que destruíram casas, comércio, plantações, prédios públicos, ruas, caminhos. Ações emergenciais e de reconstrução foram feitas. Assim, tudo voltou ao seu lugar.
Dez anos depois, as chuvas do inverno nordestino provocaram enchentes em proporções infinitamente mais devastadoras do que em 2000. Uma tragédia da natureza? Não. Uma catástrofe social, política, econômica e ambiental. Uma catástrofe nem um pouco natural.
Os números, ainda imprecisos e incompletos, nos dão a dimensão do que deixou de ser feito, do que continua a se perpetuar por muito tempo. A cidade de Barreiros, na Zona da Mata de Pernambuco tem 68, 3% de sua população desabrigada. Água Preta, na mesma área, tem 41,4% de população desabrigada. Em Murici, no estado de Alagoas, o percentual é de 55,7%.
Olhar esses números nos provoca estarrecimento. Ser parte desses números significa um sofrimento intenso, sofrimento que atravessa todas as dimensões do tempo: passado, presente e futuro. E, para nós, é na perspectiva dessas milhares e milhares de pessoas que devemos analisar, entender e construir estratégias políticas de atuação emergencial e de incidência política para que nada volte ao lugar de sempre, marcado por precariedade, exclusão e ausência de direitos.
Sabemos que o que causou uma tragédia de tão grande proporção foi a ausência de políticas estruturadoras como, por exemplo, planos de habitação e regularização fundiária para áreas urbanas e rurais; políticas de saneamento ambiental , onde estejam incluídas as dimensões de esgotamento sanitário, drenagem, coleta regular e efetiva do lixo; políticas econômicas e de trabalho que eliminem a precariedade das/ os trabalhadoras/es vinculadas/ os à indústria da cana de açúcar; reforma agrária em seu sentido pleno.
É a ausência dessas políticas que tem afetado, inclusive, as ações emergenciais realizadas tanto pelo estado, quanto pela sociedade civil em que pesem os esforços que estão sendo realizados. As precárias condições das estradas e, em especial, o acesso as áreas rurais fazem com que não se tenha nem informações precisas do que se passa com essas populações e impeçam a chegada das doações. Muitas localidades ainda não têm a energia elétrica restabelecida. A limpeza das vias públicas se dá de modo muito lento, dada a insuficiência de equipamentos e pessoal. Os abrigos públicos, geralmente em locais inadequados, não podem receber mais ninguém, o que faz com que muitas pessoas estejam abrigadas em casas de parentes e amigos/as. Dessa forma, há o risco de uma responsabilidade pública se transformar em uma questão privada.
A situação de saúde dessas populações se encontra vulnerabilizada, não só em função das enfermidades e epidemias típicas de momentos como este, mas também dos riscos de agravamento de doenças crônicas, dado que, em muitas situações, é impossível ter acesso aos medicamentos necessários via rede pública de saúde porque essas estão com suas estruturas destruídas ou comprometidas.
As escolas que não foram destruídas servem de abrigo, o que significa a impossibilidade de retorno das /dos estudantes às escolas, o que afeta não apenas seus aprendizados, mas também significa vulnerabilidade nutricional, já que, para muitas famílias, a alimentação fornecida pela escola é a garantia de alimento diário para as crianças e adolescentes.
A situação econômica dessas populações se já era bastante grave, torna-se absolutamente caótica. Isso porque tanto agricultura familiar perdeu grande parte ou a totalidade da sua produção, como as mulheres e homens que trabalhavam penosa e precariamente na cana de açúcar não têm mais onde trabalhar, pois várias usinas da região foram também afetadas fortemente pelas enchentes. O comércio dessas cidades é praticamente inexistente e antes das enchentes era, em sua maioria, informal. Ou seja, a maioria da população atingida pelas enchentes não tem nenhum FGTS para sacar, em que pese a liberação feita pelo governo federal.
Não podemos esquecer que se essa tragédia afeta toda a população dessas cidades, são as mulheres que recebem seus mais fortes impactos, pois, dada a divisão sexual do trabalho que marca a nossa sociedade, são elas as responsáveis pela alimentação, cuidado com a saúde, limpeza, atenção às crianças e idosos/as. Sabemos que os homens em várias dessas localidades começam a migrar para outros locais em busca de alguma condição de existência, deixando para trás as mulheres em situações de crua existência.
Fazemos essas considerações por termos a convicção política que não é possível tratar a tragédia que se abate sobre os estados de Pernambuco e Alagoas como sendo algo da ordem da natureza e que se divide em etapas de emergência e reconstrução, como se fosse possível que tudo possa voltar ao mesmo lugar; como se a emergência ficasse restrita as horas em que a chuva cai, os rios enchem, as pessoas se desabrigam, a sociedade se mobiliza com doações e o Estado distribui e limpa e cria políticas emergenciais. E ai, depois desse momento, quase sempre breve - o tempo em que duram as manchetes de jornais - a vida volta ao normal em sua reconstrução.
Para nós, as urgências dessas populações existem há muito mais do que 10 dias ou 10 anos. São mulheres e homens que vivem seus cotidianos em estado de emergência há muito tempo. O momento da reconstrução só fará sentido humano se suas ações alterarem radicalmente as condições de vida dessas pessoas e as nossas condições de vida. Isso porque essa é uma tragédia que diz respeito a todas e todos. É um problema nosso.
É preciso compreender que não há exatamente o que reconstruir. Não é um recomeço porque as pessoas perderam não apenas bens materiais, os parcos bens materiais que duramente conquistaram. As pessoas perderam suas histórias, seus trajetos, lembranças, memórias, referências. Não há lugar para voltar. É preciso, portanto, começar de novo, criar novos lugares, criar outras condições de existência, possibilitar não vidas cruas, mas vidas dignas.
Essa é a nossa luta e o nosso compromisso. Esse é o sentido das ações políticas que estamos fazendo, tanto no plano das ações diretas, junto às populações, quanto e especialmente na ação dirigida ao Estado. O que foi perdido não volta, mas sabemos que ação política comprometida com a igualdade e a dignidade para todos e todas é o único caminho para possibilitar a essas mulheres e homens horizontes e futuros.
Assinam essa nota:
Casa da Mulher do Nordeste
Centro de Mulheres de Joaquim Nabuco
Centro das Mulheres do Cabo
Centro de Cultura Luiz Freire
Centro Sabiá
CEAS
CENDHEC
ETAPAS
FASE
Fórum de Mulheres de Pernambuco
Grupo Curumim
Grupo de Trabalho em Prevenção PosiHIVa
Grupo Loucas de Pedra Lilás
Instituto PAPAI
Habitat para Humanidade Brasil

SOS CORPO Instituto Feminista para a Democracia.

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