Dia 14 de março, comemorou-se o Dia Internacional de Luta contra as Barragens e, ao mesmo tempo, os 20 anos de existência do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Aproveitando o momento histórico, o Amazonia.org.br fez uma entrevista exclusiva com o coordenador geral do MAB, Luiz Dalla Costa, que abordou temas importantes sobre a questão.
Segundo ele, estudos apontam que as consequências das construções de hidrelétricas são muito mais fortes para as mulheres do que para os homens. “A mulher é a que tem que se preocupar, principalmente na região rural, com os filhos, com sua propriedade; elas muitas vezes não são respeitadas, porque a visão patrimonialista que as empresas possuem só respeita os ‘chefes de família’”, diz ele.
Costa também aponta que a violação dos direitos das populações na Amazônia foi muito maior. “Elas sofreram todo o tipo de violência: fraude, uso de veneno para matar a floresta, proliferação de mosquito, não reconhecimento de direitos das famílias que foram atingidas, e que até hoje lutam por seus direitos”.
Veja a entrevista na íntegra.
Amazonia.org.br – Qual a sua análise sobre os 20 anos de atuação do MAB?
Luiz Dalla Costa - É importante dizer que a luta dos atingidos tem mais de 20 anos. Toda a história dos atingidos vem desde a década de 1970. O que comemoramos agora é a oficialização do movimento no âmbito nacional, o MAB enquanto uma organização nacional, instituída em um encontro em 1991, em Brasília.
Nós conquistamos, ao longo deste tempo, o direito de se organizar. O direito de dar a voz e fazer serem ouvidas as populações que sempre eram excluídas no processo de decisão.
O MAB, em seus 20 anos, se transformou em uma ferramenta organizativa daquelas populações mais excluídas, das populações que moram nas barrancas dos rios, que nunca eram ouvidas e que, por meio dessa organização, passam a ser ouvidas. Tanto que, no ano passado, o então presidente da República, Lula, reconheceu que o Estado brasileiro possui uma dívida histórica com essas organizações e que o Estado deve buscar a reparação dessa dívida histórica. Ou seja, chegamos ao ponto que as autoridades reconhecem o MAB como instrumento legítimo em defesa dos direitos dos atingidos por barragem, e isso é muito importante.
A segunda conquista é o resultado de nossas lutas. Por exemplo, a barragem de Belo Monte, que era para ser construída em 1989. Já naquela época os atingidos estavam se organizando, junto com a luta indígena que é muito forte. Conseguimos levar essa luta adiante por mais de 20 anos.
Em outros locais do Brasil isso acontece da mesma maneira. No Sul, há um projeto de construção de uma usina que se chama Itapiranga, que as pessoas lutam há mais de 20 anos para não deixar que seja construída. Em São Paulo, no Vale do Ribeira, os remanescentes quilombolas estão há 25 anos lutando contra a construção (de hidrelétrica). Hoje, o Rio Ribeira é o único no Estado de São Paulo que não tem barragens.
Além disso, em locais onde foram construídas hidrelétricas, os atingidos conseguiram ter pelo menos os direitos reconhecidos. Há vários lugares de reassentamento de populações atingidas, o que antigamente era desrespeitado pelo Estado.
Por último, no final do ano passado, houve a instituição de um decreto, inclusive estamos conversando com o governo sobre sua regulamentação, que reconhece que antes do processo de licenciamento das construções tem que haver o cadastramento e o reconhecimento dos direitos dos atingidos.
Tudo isto é fruto do trabalho não só do MAB, mas das organizações que lutam pelos direitos dos atingidos.
Amazonia.org.br – Quantos atingidos por barragens existiam na época da criação do MAB e quantos existem hoje?
Costa – Eu não tenho este número e isto, inclusive, é uma das críticas, não há dado oficial. Há um estudo recente de uma professora que faz parte da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), Miriam Regini Nutti, que reconhece que não há dados oficiais sobre o número de famílias atingidas. Até porque o conceito que o Estado e as empresas usavam para os atingidos era só aquele do proprietário de terras. Muitas vezes, numa mesma propriedade de terra, há duas, três famílias.
O que se tem é uma ordem de grandeza. Estima-se que em torno de 1 milhão de pessoas foram atingidas. A própria professora Miriam aponta que nos próximos dez anos poderão ser atingidas mais de cem mil pessoas. Mas não existe um número exato.
Acreditamos que esse número será muito superior. Só em Belo Monte serão mais de 20 mil pessoas.
Amazonia.org.br – Quais os principais impactos sentidos pelos atingidos?
Costa – O primeiro impacto é você sentir que a sua terra vai ser inundada e que você vai ter que se retirar dela: é saber que sua família terá que sair da própria casa, que será inundada.
Pior do que isso é você ter uma declaração de um diretor de barragem, como a de Campos Novos, que disse: “ser atingido é uma coisa, ter direito é outra”. Isso quer dizer, você será expulso, mas não pode reclamar os seus direitos, que você, a princípio, não tem nenhum.
São vários problemas sérios, de violação de direitos, deste modelo que prevê que a energia e a água só servem para o interesse das grandes empresas, que querem ganhar com isso a qualquer custo, explorando não só as pessoas que foram expulsas, mas também os consumidores, ao cobrar taxas abusivas de energia elétrica – já que somos uma das matrizes energéticas mais baratas e uma das taxas mais caras do mundo.
Amazonia.org.br – Vocês têm uma dimensão dos impactos sofridos pelas mulheres atingidas por barragens?
Costa - Recentemente, estamos estudando isso com mais propriedade. Todos os estudos apontam que o impacto, a consequência das barragens, é muito mais sério para as mulheres, por várias razões: a mulher é a que tem que se preocupar, principalmente na região rural, com os filhos, com sua propriedade. Elas muitas vezes não são respeitadas, porque a visão patrimonialista que as empresas possuem só respeita os “chefes de família”. A mulher é colocada em uma posição subalterna e, além disso, quando as obras são construídas, o processo de prostituição e a violência contra as mulheres é muito grande em todos os lugares.
Não tenho dúvida nenhuma que o impacto sobre a vida e o direito das mulheres atingidas é muito maior. Eu diria que elas sofrem duas vezes no processo de construção de barragens.
Amazonia.org.br – Como está a situação dos atingidos por barragens que vivem na região amazônica?
Costa - Eu diria que, na Amazônia, temos observado que o drama dos atingidos é maior. A vinculação dos atingidos com o rio é maior. O rio é tudo na Amazônia, é meio de transporte, é alimento. Em outras regiões brasileiras, a vinculação da população com a terra tem esse caráter, e na Amazônia com o rio é muito forte. O impacto das construções nas populações ribeirinhas na Amazônia ganha um caráter mais dramático.
Historicamente, a violação dos direitos das populações na Amazônia foi muito maior. O caso de Tucuruí (PA) é emblemático. As populações sofreram todo o tipo de violência: fraude, uso de veneno para matar a floresta, proliferação de mosquito, não reconhecimento de direitos das famílias que foram atingidas e que até hoje lutam por seus direitos.
Outro exemplo é a usina de Balbina (AM), que inundou uma imensa área para uma mínima produção de energia e até hoje, quando há enchente, alaga toda a região.
Esse foco de construção, nos rios Xingu, Tapajós, Madeira, preocupa de forma muito grande toda a direção do MAB e entidades que nos acompanham.
Amazonia.org.br – Como o MAB se posiciona com relação à usina de Belo Monte?
Costa - Estamos lutando e nesta semana teremos audiência em Brasília com os ministérios para que o governo brasileiro reveja essa obra e não a construa. Esta é a nossa posição. Para nós é um absurdo a construção dessa obra que terá tantos impactos, tantas dúvidas, apenas para beneficiar as grandes multinacionais.
A posição do MAB é inequívoca: condenamos a obra. Ela não deveria ser construída neste momento. É preciso haver um debate nacional sobre a questão e implantação de novas alternativas para a área energética brasileira.
Amazonia.org.br – Quais são as prioridades do MAB daqui para frente?
Costa - Continuar na luta por um novo projeto energético popular, que contemple o desenvolvimento do país, com ampla distribuição da renda para todos os brasileiros; a luta pelos direitos dos atingidos por barragens, inclusive o direito de dizer “não” às obras e a luta para que toda a injustiça praticada contra os atingidos tenha alguma forma de reparação.