O ataque à legislação ambiental e a atualidade da tragédia dos comuns. Artigo de Fernando Fernandez


Nunca antes na história deste país se viu uma tão grande e bem coordenada ofensiva contra a legislação ambiental. O maior exemplo, claro, é o do Código Florestal. Ao mesmo tempo, surgem mais e mais propostas para recategorizar Unidades de Conservação de modo a diminuir seu grau de proteção, ou até para reduzir suas áreas. Outra proposta descentraliza o licenciamento ambiental, retirando poderes do IBAMA e passando-os para órgãos ambientais estaduais ou municipais. Até os gregos da antiguidade sabiam que esse caminho é trágico.
Um recurso aberto e desprotegido acaba devastado como essa área de cerrado em Bauru, São Paulo. Foto: Raaport.
Toda vez que alguém propõe algo assim, a alegação é sempre a mesma: o país se encontra numa nova situação, numa nova fase de crescimento acelerado, e a legislação ambiental existente seria antiga e ultrapassada. Mudanças na legislação, eles dizem, são necessárias para adaptar o país a um mundo em contínua transformação, são parte da modernidade.
Não estou nem um pouco convencido disso. Não há nada de errado em princípio com mudanças na legislação para acompanhar as transformações do mundo; isso acontece em qualquer sociedade humana. Porém, é preciso ter bem claro que as mudanças propostas representam um baita retrocesso. Para entender por que, acho que é crucial entender como elas se encaixam na “tragédia dos comuns”, uma situação conhecida há muito tempo – há quase dois mil e quinhentos anos, na verdade – e que traz sérios problemas. Essa discussão bastante antiga infelizmente parece cada vez mais atual no Brasil de hoje.


O nascimento da idéia

Tucídides, historiador grego do século V, A.C., já percebia o conflito entre recursos abertos e o interesse individual.
No quinto século antes de Cristo, na Grécia antiga, o grande historiador Tucídides já havia percebido claramente o mecanismo da tragédia dos comuns. Ele escreveu:
"Eles devotam uma fração muito pequena do seu tempo à consideração de qualquer objetivo público, e a maior parte dele a perseguir seus próprios objetivos. Enquanto isso todos imaginam que nenhum mal vai vir dessa negligência, que é problema de alguém mais cuidar disso ou daquilo para ele; e portanto, uma vez que a mesma noção é a que cada um tem separadametne, a causa comum imperceptivelmente se degrada.” Seu compatriota Aristóteles, no século seguinte, também manifestou preocupações similares. Muito tempo depois, a idéia foi expressa com toda clareza, em 1833, pelo economista inglês William Forster Lloyd.
Lloyd propôs uma pequena fábula sobre uma vila medieval inglesa que ilustra bem o raciocínio da tragédia das áreas de uso comum. Cada vila assim tradicionalmente possuía uma área usada coletivamente por todos os habitantes, por exemplo para pasto. Em uma vila imaginária, o pasto produzia forragem suficiente para alimentar mil bois. A vila tinha mil pastores, e se cada um tivesse um boi, o pasto seria capaz de se manter indefinidamente, garantindo sustento para todos eles. Agora imagine que um dos pastores decidisse colocar não um, mas três bois no pasto. Do ponto de vista individual, seria uma decisão perfeitamente racional, porque ele iria triplicar seu faturamento, e dois boizinhos a mais, afinal de contas, não iriam fazer nenhuma diferença. Onde pastam mil bois, pastam mil e dois.
Nosso pastor teria toda razão, se não fosse por um pequeno detalhe: outras pessoas à volta dele inevitavelmente vão pensar da mesma forma. Se por exemplo metade dos pastores pensasse assim, e colocassem três bois cada, já teríamos 1500 bois desses, mais os 500 dos demais. Mas onde pastam mil bois, não pastam dois mil. Desse momento em diante, numa situação assim, a tragédia está em pleno curso: é inevitável que haja sobrepastoreio, que o pasto seja degradado, e que por fim seja impiedosamente destruído pela erosão. O que no início parecia a decisão racionalmente mais correta para cada um trouxe a ruína - econômica e ambiental - para todos.


Benefícios individualizados e prejuízos coletivizados

Garret Hardin, ecólogo norte-americano, na década de 1960, formalizou a ideia da Tragédia dos Comuns. Apesar dessas análises anteriores, o problema só passou a ser mais discutido a partir do final da década de 1960, quando foi apresentado pelo ecólogo humano Garret Hardin, num artigo clássico na revista Science
que lhe deu o nome - “The tragedy of the commons”.
Esta expressão tem sido traduzida em português como “a tragédia das áreas de uso comum”, ou simplesmente “a tragédia dos comuns”. Hardin formalizou e estendeu as idéias de Tucídides, Aristóleles e Lloyd, utilizando o exemplo da vila e do pasto que havia sido proposto por este último. Hardin argumentou que o que chamamos de problemas ambientais tendem a surgir em situações onde o benefício é individualizado e o prejuízo é coletivizado. Numa situação assim, o estímulo para superexplorar é muito maior que o estímulo para conservar.
Tanto Hardin como a americana Elinor Ostrom – que ganhou recentemente um prêmio Nobel de economia por seu trabalho – reconheceram que a tragédia dos comuns poderia em princípio ser evitada por manejo local eficiente de recursos de propriedade compartilhada, como no caso de extrativismo ou pesca por exemplo. No entanto, isso na prática é bastante difícil em muitos casos, especialmente em situações onde o “recurso” em questão é um serviço ambiental difuso, como a água, o ar ou o clima. Não há dúvida que o mais sábio é evitar, sempre que possível, cair em situações que favoreçam o aparecimento da tragédia dos comuns.
Um aspecto bem conhecido da tragédia dos comuns é o efeito da escala: o risco de problemas tende a aumentar à medida que aumenta o tamanho do sistema que estamos analisando. Não importa quão grande seja o sistema, os benefícios de uma exploração irresponsável de seus recursos continuam igualmente evidentes, porque por serem individualizados são facilmente perceptíveis por cada um. Os prejuízos coletivizados, por sua vez, parecem cada vez mais difusos e portanto difíceis de perceber. A vantagem que desmatar uma margem de rio traz para um agricultor pode ser muito evidente, mas o efeito que esse ato terá sobre a piora da qualidade da água, embora exista, será bem menos óbvio.
Tudo isso parece familiar? Pois é. Se você pensar bem, é difícil pensar em qualquer problema ambiental que não se encaixe nessa lógica – o que torna cada vez mais fundamental tê-la em mente quando discutimos o mundo de hoje.

As mudanças na legislação e a tragédia dos comuns

"Enquanto os produtores parecem só pensar no aumento da sua própria área, não vêem que a perda dos serviços coletivos vai mais cedo ou mais tarde levar à queda de produtividade também. Seria um baita tiro no pé; tragédia dos comuns clássica."


Por que esta questão parece mais atual que nunca no Brasil?
Os “commons” da nossa história são a nossa água (nossos rios, lagos e mares), os ambientes críticos como margens dos rios e encostas florestadas, a nossa atmosfera, a nossa biodiversidade. Tudo isso são recursos compartilhados que geram serviços ambientais para todos. A água é essencial para tudo, claro, inclusive para a própria agricultura. Proteger as margens dos rios protege sua qualidade, e impede seu açoreamento e degradação. As florestas protegem os solos contra a erosão, e nos morros impedem tragédias como as que tantas vezes temos visto em encostas desmatadas e irresponsavelmente ocupadas. As florestas em geral melhoram a qualidade do ar e os microclimas locais e regionais. Além disso preservam grande parte do que ainda resta de biodiversidade e portanto os serviços que ela presta, incluindo a polinização de muitas culturas agrícolas. Por último mas não menos importante, os habitats naturais ajudam a mitigar as mudanças climáticas, que entre outras coisas obviamente podem ter efeitos desastrosos sobre a produção agrícola.
Toda vez que se protege um “common” assim através de uma Área de Preservação Permanente (no caso do Código Florestal) ou de uma Unidade de Conservação, o que está sendo feito é deixar a área em questão fora da lógica desastrosa da tragédia dos comuns. Por outro lado, enfraquecer o código ou permitir exploração de recursos em uma reserva significa entregar mais e mais áreas para esta situação. É difícil imaginar que um agricultor que seja autorizado a plantar até a beira do rio vá dar tanto valor à manutenção dos serviços ambientais coletivos quanto ele dará para o aumento do seu lucro. Isso equivale a mergulhar de cabeça na tragédia dos comuns, e é uma receita certa para o desastre. Não só ambiental, mas econômico também. É óbvio que muito da alta produtividade agrícola que temos é possível justamente porque temos serviços ambientais razoavelmente protegidos. Enquanto os produtores parecem só pensar no aumento da sua própria área, não vêem que a perda dos serviços coletivos vai mais cedo ou mais tarde levar à queda de produtividade também. Seria um baita tiro no pé; tragédia dos comuns clássica.
E quanto a descentralizar o licenciamento ambiental, passando-o de um órgão federal para órgãos estaduais ou municipais? Os problemas trazidos por isso são um pouco mais sutis, mas podem ser facilmente entendidos se pensarmos no que foi falado acima sobre o efeito da escala sobre a intensidade da tragédia dos comuns. Serviços ambientais freqüentemente são difusos, em grandes escalas, e não respeitam divisas estaduais ou municipais. É mais fácil perceber sua importância quando pensamos no todo – no país, ou mesmo do nosso planeta. Já os benefícios individualizados são mais fáceis de perceber na escala local, por cada um dos interessados. Por isso, numa escala estadual ou municipal os órgãos ambientais estariam muito mais expostos às pressões locais para licenciar empreendimentos desastrosos, enquanto seriam menos capazes de perceber os efeitos prejudiciais de tais decisões. É difícil acreditar, aliás, que isso não seja exatamente o que está por trás deste tipo de proposta. Mais uma vez, os prejuízos seriam coletivizados, seriam de todos nós.

Modernidade ou retrocesso?
"...o que estamos vendo nada mais é do que a velha pressão de alguns para se apossarem do que é de todos. Isso não acaba nada bem, até Aristóteles já sabia”.

O que está acontecendo, então, esta sanha de ataques à legislação ambiental, pode até ter algo de novo, mas não tem nada de moderno. O que há de novo, no fundo, é apenas a intensidade da pressão. Com uma população maior do que há décadas, e uma economia muito maior e ainda desperdiçadora, a pressão sobre os recursos naturais vêm crescendo imensamente no Brasil nos últimos anos. Fora isso, não se iluda: o que estamos vendo nada mais é do que a velha pressão de alguns para se apossarem do que é de todos. Isso não acaba nada bem, até Aristóteles já sabia. Mas nós nem sempre percebemos, em parte porque no Brasil existe aquela triste cultura de que “o que é de todo mundo não é de ninguém”. É preciso parar com isso. Isso já fez mal demais ao nosso país, e não deixemos que faça mais. O que é de todo mundo é de cada um de nós. As APPs e os Parques Nacionais são nossos. São meus, são seus e de todos nós, e precisamos cada vez mais deles.
É claro que abraçar a tragédia dos comuns é apenas um dos aspectos das mudanças propostas para a legislação ambiental brasileira. Há outros aspectos, mas é preciso ter muita clareza do que, no todo, essas propostas representam. Como os grandes ecólogos brasileiros Thomas Lewinsohn (da UNICAMP) e Jean Paul Metzger (da USP) perguntaram no título de um artigo recente na Science: “Legislação ambiental brasileira: a toda velocidade em marcha a ré?”. Esta é a questão com que nos defrontamos hoje. Estamos diante de uma imensa tentativa de retrocesso.
Hoje, o Brasil parece ser visto pelo mundo como o país da oportunidade. É interessante pensar por que. O bom momento econômico do nosso país se deve fundamentalmente ao bônus demográfico (ver “Nunca é por causa da demografia”, aqui em O Eco), mas também tem ajudado a alta demanda internacional por commodities e matérias primas cada vez mais escassas e que ainda temos aqui. Não se iluda, estamos em um momento bom não por causa de nossa tecnologia ou inovação, mas sim porque fomos capazes de conservar nossos recursos naturais melhor do que as economias envelhecidas e exauridas dos países “desenvolvidos”. Não faz mais sentido querermos reproduzir a trajetória dos europeus, e nos “desenvolvermos” (ênfase nas aspas) à custa da destruição dos nossos recursos naturais. Nós estamos bem porque ainda temos o que eles não tem mais. Modernidade hoje é ter um país com um meio ambiente tão equilibrado quanto possível, e que invista em tecnologia capaz de gerar qualidade de vida sem destruir, porque são essas coisas que o mundo cada vez mais desesperadamente está procurando. Não matemos nossa galinha dos ovos de ouro. Mudar a legislação para diminuir a proteção aos nossos serviços ambientais não é ser moderno – é perder o trem da história.
FERNANDO FERNANDEZ
Biólogo, PhD em Ecologia pela Universidade de Durham (Inglaterra). Professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, seu principal interesse em ensino e pesquisa é a Biologia da Conservação.



Um comentário:

  1. O processo de destruição tem sempre suas raízes na "homo economicus" travestido agora, na modernidade globalizada com estereótipos variados e bem arquitetados para manter sua lógica devastadora. Nennum progresso trouxe, em essência, benefício social, limitando-se a concentrar riqueza, promover e instigar o consumismo embasado em superfluidades muito bem elaboradas, como isca para atrair os incautos.
    O desmonte do Código Florestal, sobretudo no que tange às APPs traduz calramente este retrocesso, trazendo no seu bojo uma série de complicadores de alcance intergeracional. O Brasil pode ser o único país com garantia para o futuro, mas não nessa perspectiva de desmonte da Legislação Ambiental. Então, neste caso, o humanóide passa a ser categorizado como "homo burrus" fermentando a inviabilização de todas as formas de vida, inclusive a sua, porque o mundo também já depende do Brasil.

    Luiz Dourado

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