Aproveitando a realização da Campus Party, pedi um texto para Daniela Matielo, jornalista e pesquisadora da Escola do Futuro da Universidade de São Paulo, e Felipe Andueza, analista ambiental, sobre o lixo gerado pela informática. Eles já haviam contribuído neste espaço anteriormente, mas o momento pediu uma atualização, uma vez que a Política Nacional dos Resíduos Sólidos brasileira, sancionada no ano passado, pode mudar as coisas.
Neste momento em que todos louvamos o admirável mundo novo trazido pela tecnologia, com suas distâncias encurtadas e a possibilidade de distribuir conhecimento, faz-se necessário manter os olhos bem abertos sobre os seus efeitos colaterais, agravados pelo consumismo inconsequente. Até porque, a estrada para a perdição é asfaltada com monitores de computador usados (e rejuntada com saquinhos plásticos, é claro)
Quando surgiu, há 50 anos no lugar que hoje conhecemos como Vale do Silício, a indústria de eletrônicos se auto intitulou como uma “indústria limpa”. Trabalhadores, que antes trabalhavam nas grandes plantações que existiam na região, assumiram seus postos nas fábricas de chips, placas, discos rígidos e todos os outros componentes “high-tech” sem saber que na verdade essa mudança de ocupação estava colocando suas vidas em risco. Já em 1970, foram publicados os primeiros relatórios mostrando que muitas substâncias usadas na fabricação desses componentes eram altamente tóxicas, como o cádmio e o chumbo, e associando sua manipulação com o desenvolvimento de cânceres, problemas na formação de fetos e outras complicações de saúde entre os trabalhadores. Foi necessária uma grande movimentação para tentar melhorar essas condições de trabalho. Os principais locais de produção de componentes acabaram sendo transferidos para outros lugares do mundo, criando novos problemas em países como Índia e China.
Ou seja, o problema não foi resolvido, apenas jogado para baixo do tapete.
Há 50 anos, por seu alto custo, poucas pessoas tinham acesso a essas “novas tecnologias”. Hoje, no entanto, são itens indispensáveis no nosso dia-a-dia: celulares, computadores, monitores e uma infinidade de aparelhos cujos preços cada vez mais acessíveis estão permitindo que se popularizem entre a população. O aumento do acesso é bem-vindo, sem dúvida. O acesso à internet e a possibilidade de obter informação, comunicar-se e ampliar redes, possui um indiscutível potencial, e deve ser considerado um direito.
Entretanto, o rápido aumento do consumo também implica em um aumento de produção, e as substâncias tóxicas que causaram incontáveis problemas aos primeiros trabalhadores da indústria de eletrônicos continuam existindo. E, naturalmente, não é apenas na hora da produção que estas substâncias são tóxicas, mas também na hora do descarte: o lixo eletrônico é um problema que está no centro das discussões ambientais, preocupando governos e organizações em todo o mundo.
A reciclagem destes materiais precisa ser feita de maneira correta, pois a manipulação ou incineração dos componentes sem os devidos cuidados pode causar duradouras contaminações ao meio. Uma prática adotada por muitos países era o envio desse material (que de maneira nenhuma pode ser descartado junto ao lixo comum) para a África ou a China, onde passavam a ser reciclados sem nenhuma preocupação, fosse ambiental ou com a saúde dos trabalhadores.
Para tentar resolver essa situação, foi assinada e retificada em 1989 a Convenção da Basiléia, que regulamenta os movimentos internacionais de resíduos perigosos. A grande maioria dos países assinou o documento, com exceção de alguns menores e dos Estados Unidos. Ainda assim, o problema persiste no mundo, como é possível verificar em diversos vídeos-denúncia disponíveis no YouTube.
(Prova de que nem sempre a Convenção é cumprida foi o envio de toneladas de lixo contaminado da Inglaterra aqui para o Brasil, que ganhou as páginas dos noticiários em 2009.)
A Convenção, porém, não cobre todo o ciclo de produção dos eletrônicos, e os países tiveram que elaborar legislações que regulamentassem a gestão interna desses resíduos. Na União Européia, cuja legislação é uma referência na área, a diretiva Weee (Waste Electrical and Electronic Equipment) regulamenta a produção e descarte dos eletrônicos, definindo limites nas quantidades de substâncias tóxicas utilizadas na fabricação. Ela impõe que uma porcentagem mínima dos materiais possa ser reciclado e institui a chamada “logística reversa”, que responsabiliza a indústria eletrônica pela coleta e descarte adequado dos resíduos de seus produtos. Ou seja, se produziu algo que pode causar problema, você também é responsável pelo destino final da mercadoria.
E no Brasil?
No Brasil, em 1991, entrou em trâmite na Câmara dos Deputados o projeto de lei da Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PL 203/91) que deveria também regulamentar a reciclagem e a logística reversa dos resíduos eletro-eletrônicos. No final do primeiro semestre de 2009, porém, o grupo de trabalho responsável excluiu os resíduos eletrônicos do projeto de lei.
No Brasil, em 1991, entrou em trâmite na Câmara dos Deputados o projeto de lei da Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PL 203/91) que deveria também regulamentar a reciclagem e a logística reversa dos resíduos eletro-eletrônicos. No final do primeiro semestre de 2009, porém, o grupo de trabalho responsável excluiu os resíduos eletrônicos do projeto de lei.
Para exigir que os resíduos tecnológicos voltassem à PNRS, o Coletivo Lixo Eletrônico lançou um Manifesto e um abaixo-assinado pedindo a reinserção do lixo eletrônico no projeto, tornando a logística reversa obrigatória: ou seja, responsabilizando a indústria de eletrônicos pela coleta e destinação adequada dos resíduos de seus produtos. A ação foi um sucesso e, depois de grande repercussão na mídia e de discussões acaloradas entre os diferentes grupos envolvidos com o tema, em outubro de 2009 o Grupo de Trabalho da Política Nacional de Resíduos Sólidos voltou atrás e classificou os eletro-eletrônicos e lâmpadas fluorescentes como resíduos sólidos especiais de coleta obrigatória por parte dos produtores, juntamente com as embalagens de agrotóxicos, pneus etc, devido ao alto impacto ambiental que possuem.
E então, em agosto de 2010, depois de quase duas décadas de história, o projeto foi finalmente sancionado pelo Presidente, tornando-se efetivamente lei.
Problema resolvido? Não é bem assim. A aprovação da lei é um primeiro passo para solucionar o problema dos eletrônicos, porém mais de quatro meses depois de haver sido sancionada, a PNRS segue sem regulamentação, o passo seguinte para garantir sua aplicação (e eficiência). É por meio da regulamentação que são definidas as sanções para quem não cumprir a norma e como se dará a implementação das exigências da lei.
Em legislações de outros países, observam-se mecanismos jurídicos de sucesso para garantir essa aplicação de diferentes maneiras, que poderiam ser implementados no Brasil, como por exemplo:
1. Definição pública do Modelo de Responsabilidade Compartilhada sobre os resíduos: A PNRS, tal como o texto de lei foi aprovado, obrigará fabricantes, produtores e importadores de resíduos “especiais”, onde os eletro-eletrônicos estão incluídos, a coletarem e darem o melhor destino a seus produtos uma vez descartados pelos consumidores. FALTA: definição das responsabilidades do Poder Público, nas três esferas, em auxiliar e compor essa responsabilidade, as responsabilidades dos consumidores em não descartar no lixo doméstico comum e sim em postos de coleta autorizados, além da gestão dos aparelhos órfãos (adquiridos no mercado ilegal ou de fabricantes já inoperantes).
2. Metas graduais: A quantidade relativa (porcentagem) a prazo de resíduos eletrônicos que devem ser coletados e reciclados não é definida. Uma prática pouco comum no Brasil, e muito utilizada no exterior, que estabelece metas graduais para a indústria, o comércio e a população se adaptarem, incrementaria as taxas de reciclagem.
3. Estudos periódicos da aplicação: prática muito bem-sucedida na Diretiva Europeia de Resíduos de Aparelhos Eletro-Eletrônicos de realizar estudos sobre a gestão desses resíduos e analisar periodicamente a eficiência da lei.
4. Exigência e avaliação por parte do órgão competente dos planos de gestão de resíduos dos fabricantes-importadores: prática complementar ao estudos periódicos e que auxilia o Poder Público a fiscalizar a aplicação da lei, e as empresas a se organizarem e deixarem seus processos de descarte de resíduos mais transparentes, uma vez que estes planos seriam públicos.
5. Financiamento e incentivos ao mercado da reciclagem e aterros sanitários: financiamento à profissionalização das cooperativas de reciclagem, a linhas de pesquisa de reciclagem, incentivos aos produtos fabricados com altas taxas de reciclados, auxílio na criação e implementação de aterros sanitários pelos municípios, entre outros.
Como lidaremos com os resíduos, como problema ou oportunidade, definirá se haverá um novo, ou um velho disfarçado de novo. De novo?
Nenhum comentário:
Postar um comentário