Água, uma commodity ?


Especialista norte-americano alerta, em artigo na revista Nature, para o risco de o recurso natural se tornar uma mercadoria negociada globalmente. Processo seria motivado pela escassez cada vez maior e poderia dificultar ainda mais o abastecimento de regiões pobres

Max Milliano Melo
O termo inglês commodity é utilizado para designar uma série de produtos que, independentemente de onde e quando são produzidos, mantêm mais ou menos a mesma qualidade, e seu preço pode ser negociado em escala global. É o caso do petróleo, do ferro, da soja, do trigo e do café, entre outros, comprados e vendidos em bolsas de mercadorias e futuros. Em breve, essa lista deve ganhar um novo e importante item: a água. Pelo menos é o que prevê um artigo publicado na edição de hoje da revista científica Nature. Segundo o texto, o movimento seria reflexo da escassez cada vez maior do bem natural, e as consequências, desastrosas.
Para o autor, o pesquisador Frederick Kaufman, da City University of New York, nos Estados Unidos, a mercantilização pioraria ainda mais a falta do líquido em inúmeras regiões do globo. “Seria um desastre para os mais pobres do mundo, que já sofrem sem poços, sem água encanada, sem sistemas modernos de irrigação”, afirma. “A água financeirizada teria um efeito esmagador, tornando a pobreza cada vez mais difícil de eliminar e elevando o número total de miseráveis em todo o mundo”, completa.
Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), atualmente cerca de 1,4 bilhão de pessoas têm dificuldade de acesso à água potável, seja por inexistência de sistemas de encanamento, por problemas climáticos ou pela falta de tecnologia para extrair o recurso do solo. Além deles, pelo menos 2,3 bilhões de homens e mulheres não têm acesso a saneamento básico. Isso significa dizer que 3,7 bilhões de seres humanos, mais de metade da população mundial, enfrentam algum tipo de dificuldade severa em relação à água. E esses números não incluem, por exemplo, quem sofre com o racionamento, comuns em grande cidades do país nos períodos de estiagem.
Um exemplo do que pode acontecer caso haja o aprofundamento da mercantilização da água é dado pelo mercado de commodities alimentares como a soja, o milho e o trigo. Os preços desses produtos atingiram no último ano suas máximas históricas. “Um sistema global de preços de alimentos beneficiou os agricultores. Já os padeiros e consumidores foram submetidos a derivativos financeiros criados por bancos de investimento”, aponta Kaufman. Ou seja, na matemática mercadológica, especuladores ganham e o consumidor final sai perdendo.
Uma das causas é a dificuldade dos governos em regulamentar este filão de mercado. Nos Estados Unidos, um pacote de medidas para evitar especulação com alimentos acabou na Justiça, onde está parado há anos, segundo o pesquisador, por pressão dos mercados que ganharam mais poder de manobra depois que a crise mundial minou empregos. “É extremamente difícil regular o negócio de commodities globais, que movimenta US$ 648 trilhões em todo o mundo”, alerta o norte-americano.
Sem medida
A possibilidade de mudança do status da água de bem natural para produto negociado em bolsa é fruto, em grande parte, da exploração excessiva do bem, que vem se tornando tão escasso quanto ouro e petróleo. “Os aquíferos, relativamente, são poucos e estão sendo explorados. Eles, infelizmente, são fundamentais para a agricultura em uma série de países”, explica Tom Gleeson, da Universidade de Montreal, no Canadá. “Esses são recursos críticos que precisam de uma melhor gestão”, completa o especialista.
Ele lembra ainda que os efeitos da exploração excessiva da água, apesar de graves, são pouco mensuráveis pelos cientistas. “O efeito para o abastecimento é imprevisível”, afirma. Gleeson, no entanto, diz não ser possível determinar exatamente quanto uma ação que dificulte o acesso à água seria catastrófica, tanto para o usuário doméstico quanto para a agricultura.
A primeira vez que o direito à exploração passou a ser negociada como um produto mercadológico foi em 1996, na região da Califórnia Ocidental, nos EUA. A região de 2 mil quilômetros quadrados movimenta mais de US$ 1 bilhão em alimentos por ano, sendo o principal distrito de agricultura irrigada dos país. Por lá, há 16 anos, foi introduzido um sistema de comércio eletrônico em que os agricultores locais podem negociar entre si o direito de uso da água subterrânea e de superfície, que, assim como no Brasil, é regulamentado — e limitado — por lei. De lá pra cá, a iniciativa cresceu. Apenas entre 2010 e 2011, o mercado de água cresceu 20%, atingindo em todo o mundo o valor de US$ 11,8 bilhões.
Apesar dos números vultosos, Frederick Kaufman ainda vê a possibilidade de evitar o problema. “A transformação da água em uma commodity não é inevitável. Nós podemos pará-la antes que comece”, afirma. Ele defende uma regulamentação do setor, especialmente nas Américas e na Europa, onde o processo está mais acelerado. O recurso, defende, deve continuar sendo um bem universal. “Há forças que empurram para a regulamentação, mas há forças opostas a favor dos negócios de derivados. Ainda não existem ‘limites de posição’ para os banqueiros quando se trata de comida (e água)”, conclui.

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