Na carne e no osso. As histórias e a vida dos trabalhadores de frigoríficos


Carne Osso (assista ao trailer no final da entrevista) é um documentário frio e repetitivo. Isso porque ele retrata o ambiente de trabalho em frigoríficos das regiões Sul e Centro-Oeste. “No setor de frigoríficos há a questão do ambiente frio, trabalho repetitivo e com faca e que, ao longo dos anos, causam o adoecimento do trabalhador. As histórias que ouvimos contam isso e nos chocam. Há duas histórias particularmente impactantes. Uma é a de um trabalhador que perdeu o braço ao cumprir suas tarefas num frigorífico. Tem a história de uma outra trabalhadora que, de tanto esforço, seus nervos se atrofiaram e hoje ela não possui qualquer movimento nesse braço”, explica o diretor Caio Cavechini. Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, ele narra algumas dessas histórias e apresenta o ambiente retratado no documentário.
Durante dois anos, a equipe da ONG Repórter Brasil, que produziu o filme, percorreu diversos frigoríficos à procura de histórias de vida que pudessem ilustrar esses problemas. Assim, o documentário traz imagens impactantes e depoimentos que caracterizam uma triste realidade. “Esperamos que o documentário seja uma força a se somar na luta pelo direito dos trabalhadores, para que o funcionário seja tratado de forma mais humana e não como um ser matematicamente produtivo”, aposta Caio.
Caio Cavechini é jornalista formado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e documentarista. Junto com Juliano Barros, dirigiu o documentário Carne Osso. Também é diretor de Correntes, documentário que mostra o dia a dia da linha de frente ao combate à escravidão. Atualmente trabalha na reportagem e edição do quadro Profissão: Repórter, da Rede Globo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que trabalhar a questão dos frigoríficos brasileiros?
Caio Cavechini – O documentário é uma produção da ONG Repórter Brasil, uma organização que tradicionalmente já trabalha com questões voltadas aos direitos básicos de cidadania e do trabalho. Por receber diversas demandas e estar em contato com diversas realidades, nós percebemos que essa questão do trabalho em frigoríficos inclui o excesso de riscos tais como lesões por esforço repetitivo, e outras doenças relacionadas ao trabalho.  Além disso, percebemos que, nessa relação, havia muitas histórias a serem contadas e apostamos nesse formato de documentário para retratar um tema não muito falado, mas que tínhamos um material grande e que mostrava ser esse um setor problemático em termos de excesso de risco.
Nós queríamos um nome bem seco, remetendo à questão do corte e da repetição. Então,Carne Osso é em função disso: do fato de os trabalhadores desossarem as peças, os animais. O outro sentido é o osso no sentido de adjetivo, como quando você diz: “osso duro de roer”. O osso é uma coisa difícil. Portanto, tratamos de uma carne difícil, um trabalho difícil.
IHU On-Line – O texto de apresentação do documentário faz uma descrição da rotina de quem trabalha em frigorífico. A questão do trabalho degradante também é tratada no documentário?
Caio Cavechini – Nós temos duas abordagens. Nós contamos a história de trabalhadoresafastados, onde eles falam sobre como suas doenças se desenvolveram por esforço repetitivo, negligência e pressão para que se trabalhasse cada vez mais. Além disso, registramos a atividade in loco para mostrar como é esse ambiente de trabalho.
IHU On-Line – Como foi o trabalho de produção? Vocês visitaram quais frigoríficos no país?
Caio Cavechini – Nós não citamos nomes das empresas, nossa intenção nunca foi “fulanizar”, ou seja, apontar o dedo para este ou aquele frigorífico. Nosso intuito foi, isso sim, tratar do problema do direito do trabalho de uma maneira mais geral. Nós visitamos frigoríficos de várias cidades das regiões Sul e Centro-Oeste, tanto de aves quanto de bovinos e suínos.
IHU On-Line – Então, como vocês escolheram os frigoríficos que estão no documentário?
Caio Cavechini – Na região Sul nós temos uma grande concentração de frigoríficos de aves e suínos e na região Centro-Oeste há mais frigoríficos de suínos e bovinos. Por isso, pensamos nessa distribuição geográfica.
IHU On-Line – E os frigoríficos sabem que o documentário está pronto e e que será exibido em festivais pelo país?
Caio Cavechini – Acredito que sim. Isso foi noticiado em vários locais. Já recebemos pedidos de algumas empresas para que nós façamos exibições e mostremos os DVDs para o corpo de líderes e para os setores de responsabilidade social dessas empresas. Muitas empresas têm setores atuantes de responsabilidade social, tanto é que têm o contato com a Repórter Brasil. A questão é fazer com que o pensamento desses setores também possa ser permeável e possa chegar e ter capilaridade para chegar aos setores mais baixos da hierarquia. Há o depoimento de um dos nossos entrevistados que diz que a intenção muitas vezes dessas empresas é boa. Porém, ela não consegue fazer com que esse desejo por um ambiente mais saudável chegue até os encarregados, até o chão de fábrica. E esse é um diálogo que pode ser estabelecido.
IHU On-Line – Vocês enfrentaram resistência dos frigoríficos?
Caio Cavechini – Para entrar nos frigoríficos, contamos com a ajuda de órgãos públicos e fiscais do trabalho durante suas fiscalizações de rotina e também contamos com a ajuda de trabalhadores insatisfeitos – cujas identidades não foram reveladas. Esses fatores nos permitiram conhecer essa realidade mais de perto. Por isso, desde o começo vimos que o documentário deveria ser voltado aos trabalhadores mesmos.
IHU On-Line – Você confrontou o depoimento dos trabalhadores com o de órgãos do governo que devem fiscalizar esses ambientes de trabalho. O que você destaca nesses diálogos?
Caio Cavechini – A necessidade de você ter uma atuação efetiva e mais frequente, não só nos ambientes dos frigoríficos, como diversos outros ambientes. A estrutura da fiscalização é uma estrutura atuante em muitos lugares, mas é pequena, não acompanha a grande demanda, o grande número de acidentes de trabalho e doenças que se registram em todos os setores. Em muitas cidades, médias e pequenas, há fiscais que fazem um trabalho comprometido, mas não em número suficiente para atender toda a demanda das empresas.
IHU On-Line – Sabemos que o governo tem interesses econômicos pesados em jogo em relação à expansão dos frigoríficos no Brasil. Como você vê a forma como o governo lida com essa situação?
Caio Cavechini – Penso que não dá para falar numa uniformidade, “o governo”. Existem diversos setores do Ministério do Trabalho, por exemplo, como a Secretaria de Fiscalização e os fiscais nas diversas superintendências, que têm contribuído para debater novas normas regulamentadoras, novos procedimentos. Governo é uma palavra muito ampla porque você tem, ao mesmo tempo, as linhas de financiamento e exportação, importantes não só para esse setor como para diversos outros que se desenvolva. Então, penso que cada setor, no fundo, cuida da sua parte. Os órgãos de fiscalização devem ser fortalecidos para que o crescimento não signifique o esquecimento de questões importantes, como a saúde do trabalhador.
Existe a discussão de uma nova norma regulamentadora do trabalho em frigorífico que logo vai para consulta pública. Aí existem várias pressões em jogo, tanto por parte de setores técnicos quanto por parte dos frigoríficos que querem normas nas quais eles se enquadrem, como a questão da temperatura e das pausas. Tudo isso é uma discussão que está sendo travada.
IHU On-Line – Qual a realidade das pessoas que trabalham nesses frigoríficos?
Caio Cavechini – Uma das mais frequentes e que pode ser transposta para a realidade de outros trabalhadores é a questão da pressão por produtividade e do estresse do trabalho. Há depoimentos fortes em relação a isso que nós não podemos simplesmente encarar como algo natural, que “faz parte do jogo”. O respeito ao ser humano deve vir em primeiro lugar e o documentário fala sobre isso. No setor de frigoríficos há a questão do ambiente frio, trabalho repetitivo, com faca, trabalho que, ao longo dos anos, causam o adoecimento do trabalhador. As histórias que ouvimos contam isso e nos chocam. Há duas histórias particularmente impactantes. Uma é a de um trabalhador que perdeu o braço ao cumprir suas tarefas num frigorífico. Tem a história de uma outra trabalhadora que, de tanto esforço, seus nervos se atrofiaram e hoje ela não possui qualquer movimento nesse braço.
IHU On-Line – O que mais chamou atenção na rotina dos trabalhadores dos frigoríficos que você visitou para fazer o documentário?
Caio Cavechini – Principalmente a rotina de pressão para a produtividade, o trabalho repetitivo e uma certa desorganização que não é uma característica exclusiva dos frigoríficos, mas de diversos outros setores. Em alguns casos, nós vimos empresas que investiram no bem estar do trabalhador e perceberam uma produção até maior.
IHU On-Line – Vocês viram alguém se machucar durante o trabalho?
Caio Cavechini – Houve o registro de uma pessoa que teve um pequeno corte no dedo, mas nada comparado aos acidentes já registrados, como o de pessoas que perderam a perna, a mão ou tiveram cortes graves.
IHU On-Line – Com o documentário é possível conscientizar essas empresas para reprojetar tais tarefas?
Caio Cavechini – Esperamos que sim. Não é um trabalho só nosso. Várias entidades, órgãos públicos, pesquisadores de saúde e entidades sindicais já vêm lutando por isso. Algumas vitórias já foram conquistadas. Esperamos que o documentário seja uma força a se somar na luta pelo direito dos trabalhadores, para que o funcionário seja tratado de forma mais humana e não como um ser matematicamente produtivo.
O documentário estreia agora no festival É Tudo Verdade e depois nós devemos levar para outros pontos do país, além de São Paulo e Rio de Janeiro. Vamos programar exibições e debates em diversas entidades. Ele não vai seguir no circuito comercial porque não tem fins lucrativos.
IHU On-Line – Você acha que é possível existir uma carne produzida/industrializada em modelos menos degradantes para o trabalhador?
Caio Cavechini – Com certeza. O nosso documentário retrata uma situação que já vem melhorando. Embora seja uma situação grave, o retrato nacional era pior, da mesma forma que em outros países. Existem até cooperativas que fazem, porém de maneiras distintas. Algumas empresas têm investimentos nessa área, humanizando mais do que outras. Não é uma regra o desrespeito ao trabalhador e nós esperamos que isso passe a ser cada vez mais frequente.
IHU On-Line – E depois do documentário, você chegou a repensar a função da carne na sua vida?
Caio Cavechini – Particularmente, sou uma pessoa que consome bastante carne. Não cheguei a fazer uma reflexão sobre meus hábitos alimentares, porque acredito que em todos os âmbitos do nosso consumo temos que fazer escolhas conscientes. O meu caso vai nessa via. Até porque o documentário não fala em acabar com esse setor, mas em melhorá-lo.
IHU On-Line – No documentário Correntes, você trabalhou a questão do trabalho escravo. Como é, no Brasil, fazer documentário da realidade “dura”?
Caio Cavechini – Há certa dificuldade no que diz respeito ao financiamento. Nos festivais de documentário, percebemos que há grande quantidade de documentários culturais – que eu adoro, aliás. Mas há também uma necessidade e uma tendência crescente para novos olhares que problematizam o Brasil, visto haver muitas questões sociais a serem abordadas no país.
 (Ecodebate, 26/04/2011) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.
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Entrevista com Caio Cavechini

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